domingo, 12 de agosto de 2012

O DEPOIS


O DEPOIS

            De vez em quando o tempo nos prega uma peça e desprevine o “depois.” A vida que imaginamos ao nosso dispor se descamba e por caminhos não planejados, foge do nosso favor sem reconciliação. Eu não confio mais no “depois”, nem aceito os seus sinais. Vivo em busca dos momentos inesquecíveis que farão do amanhã lembranças de um hoje magnífico, mas porque fito o futuro o meu presente se descamba, perde o sabor.
            Sou como uma roupa justa que precisa a todo instante se ajustar ao sistema do corpo. As circunstâncias me puxam.

            Numa sala, aguardo a minha nota. O professor as dita como se quisesse evitar uma humilhação. As minhas teorias se justificam. Uma escultura andante passa por meus olhos e me distancia das demais coisas, do tudo ou de quase tudo. Como um beija-flor diante da flor, meus olhos param. Ela percebe o meu olhar e não foge dele. Insisto em dizer: a beleza paralisa os humanos, mesmo por alguns segundos.
Ela arrasta a cadeira, deposita sua bolsa sobre a mesa. Ajeita os cabelos e puxa a calça. Rebolando, faz vários movimentos. Não sei se para ajustar a calça ao corpo ou o corpo à calça. Vi a discordância em concordância. Quem não cobiçaria grudar em tanta beleza? Formosa. De encantos raros. As vestes em desacordo não descartavam seus privilégios.
Meu olhar se perdeu nos movimentos e se achou no sorriso dela. Cabelos encaracolados, escuros como uma noite rareando a luz da lua. O olhar forte, como felina fitando a presa, olhou-me como se já me conhecesse. Tive o mesmo olhar e acho que o mesmo pensar. Tenho a impressão que há sempre duas pessoas pensando a mesma coisa. Se alguém discorda, por que dois veículos se chocam ao cruzarem uma rua? Outro dia, numa loja dessas que vendem no crediário, vi o que chamam a luta dos Juvenal. Assim mesmo, Juvenal no singular. Tinham a mesma idade, naturais de São Paulo e vieram morar aqui em tempos diferentes. O destino os fez parecidos no nome e na idade. Pensei nos pais deles no tempo de feitura. 
            Meus devaneios tolos foram abolidos com um “tchau” e leve dançar de dedos. Segui seus passos. Em cada espaço de um passo, um embaraço.
            O olhar que parecia me conhecer se escondeu depois da porta. Pela vidraça observei seu caminhar. Há pessoas que andam, enquanto algumas desfilam.

            O tempo passa, a beleza passa, e a felicidade que fica se encarrega de guardar as lembranças dos momentos raros. Um olhar ou um sorriso podem construir tantos instantes, podem refazer um ser humano, podem dar vida a alguém esquecido na vida ou podem simplesmente melhorar o mundo.
            Depois daquele olhar que parecia me conhecer, os minutos eternizaram-se. No aconchego do riso dela tornei-me conhecido, não de fala, mas por um olhar que diz coisas, porém guarda os seus mistérios.

            — Amiga, desculpe. Prometi que traria o livro pra você, mas fiz tantas coisas hoje que nem deu pra passar em casa.
            — Você não foi almoçar em casa?
            — Não tive tempo.

            Preso a um questionário, ouvi atrás de mim um papo de amigas. Ali estava alguém traída por um “depois”. Por que existem os depois? Depois de agora, depois de amanhã, depois do depois e depois do depois de amanhã...

            A escultura andante voltou ao seu lugar. Era outro dia. Outro momento, outro sorriso, mas o mesmo olhar. Um olhar que não afugenta o coração.

O instante trouxe algo mais: o aconchego do riso dela.

No tempo presente, me fiz presente ao riso. Não quis o depois entre nós amigos, quis ser amigo sem pensar num depois.
            Um depois tem tantos rumos, e um deles é esse que percebo no meu destino, fora de rumo.