segunda-feira, 17 de setembro de 2012

TODO MUNDO JÁ GOSTOU DE ALGUÉM




            — Todo mundo já gostou de alguém.
            Ouvi uma das moças dizendo quando passavam por mim. No corredor da universidade pessoas se desencontravam. Sentidos contrários também são caminhos. Com os passos não posso ir e voltar ao mesmo tempo, mas com os pensamentos posso partir ao mesmo tempo em que retorno. Não saio de mim. Às vezes até queria, mas tudo que consigo fica na imaginação. Quando gostamos saímos da primeira pessoa do singular para buscar repouso na primeira pessoa do plural. O eu busca o nós. O mundo passa a ter sonhos, sonhados com alguém.

            A frase quis que eu continuasse ouvindo a conversa. Passos ao contrário diminuíram o som, me distanciaram do fato, mas me trouxeram para dentro de mim. A força dos contrários. Há sempre um ir enquanto há um voltar. A frase ficou. Parti para um passado, não distante, mas lembrado. Lembranças lembradas não passam, ficam para aborrecer o presente.

            A filosofia desfilou pelo corredor e abriu caminho em um ser que não sabia se “todo mundo já gostou de alguém”. Pensava que só eu. Há tantos jeitos de gostar. Sartre já declarou: “Para saber uma verdade qualquer a meu respeito, é preciso que eu passe pelo outro”. Dicotomia? Sofia ao passar por mim fez pensar nos amores que desfiz e os que eu desprezei.
            Ela ditava seus conhecimentos à Clara e o interstício clareou não os meus gostares que de tanto mudar perderam a essência de perceber o outro, mas iluminou esse ser que já gostou ou gosta de alguém.

            Todos os dias passamos pelo outro. Alguns ficam, outros passam como os dias. Um dia só é lembrado quando em seu passar deixa acontecimentos belos ou trágicos.

Do quê lembramos no final do dia?

            O corredor não era suficiente iluminado para ver os olhos de Sofia, também não era um tanto escuro que não me deixasse ver beleza na inteligência. Há inteligências que fogem da generosidade dos livros para se esconder nos espelhos. Espelhos aprisionam por fora, a leitura aprisiona por dentro. Depois que o tempo andou, a beleza que reflete é a que vem de dentro.
            Nós crescemos. Revi Sofia. Num sentido contrário, penso: há beleza nos contrários. Um beijo nasce de dois movimentos contrários, um abraço...

            Observei os cabelos presos feito rabo de cavalo. A trança era como a minha impaciência buscando encontrar a palavra certa para continuar a frase. Ela se escondia atrás de um notebook rosa. Ouvi a professora no canto da sala avisar que a biblioteca estava para fechar. Ela acelerou seus afazeres e eu acelerei um diálogo sem rumo que, com ela, ganhou direção. Cogitei viver no mundo de Sofia. Não na estória de Jostein Gaarder, mas no encanto que à minha frente dispersava os meus caminhos. Que caminhos? O do saber. Aprender sempre, a vida me deu esse destino. Aprendo tanto que no final quando me perco, volto a aprender o que já aprendi. Tempos novos trazem conhecimentos modificados. Havia uma imensa razão em Heráclito quando afirmava que não é possível mergulhar duas vezes no mesmo rio, porque o rio e quem nele mergulha não são mais os mesmos no segundo mergulho. Assim concebo o meu saber, ele deve se renovar a cada instante.
            Sofia abriu um sorriso quando mencionei a frase. Gesticulou e indagou com espanto. Não disse palavras. Estalou os olhos e movimentou as mãos do meio para fora.
            — Quem te contou isso? Disparou. Sem brandura.
            — Ouvi alguém dizer no corredor.
            — Sei. O cavalheiro possui a mania de ouvir as conversas no corredor?
            — Se não quer que alguém ouça, não diga as coisas aonde todo mundo pode ouvir. – Fiz uma pausa. – Você tá coberta de razão, todo mundo já gostou de alguém...
            — Eu disse para a minha amiga...
            — Não, disse a mim também, eu ouvi.
Ela calou-se observando a tela do notebook.
            — Há quanto tempo nos conhecemos?
            — Há muito tempo, mas de conversa, há alguns minutos. – Respondi olhando no relógio. Ela guardou o notebook. Suspirou desolada. Silêncio...
            — O quê você ouviu?
            — Que todo mundo já gostou de alguém. – Ela passou por mim, mas antes de se distanciar, refletiu.
            — Pena descobrir isso agora, pois todo mundo já gostou de alguém. – Com ênfase no “todo mundo” disse girando a cabeça com ar de ironia.
            — Todo mundo também já odiou alguém de quem já gostou...
Eu disse sentindo o impacto das palavras dela. E sobre o meu raciocínio, acho que ela nem ouviu. A ira esconde o poder dos ouvidos.
            Os passos endurecidos, a paciência escassa, uma beleza rara e os gestos sem brandura confundiram o meu ser. As pessoas não são tão dóceis. As pessoas não são tão amargas, as pessoas são... despercebidas.

            Clara clareava o sorriso dos rapazes quando passava usando aquelas vestes. Os nossos olhares a seguiam como um espectador em corrida de fórmula-1. Ela cerrava as sobrancelhas. Sendo claro, ela não gostava. Por quê? Há certos olhares que dizem mais que palavras, mas admiração é admiração, desejos possuem outro olhar. Mike Murdock já disse: “Não podemos reclamar daquilo que permitimos”. Há um deleite em nossas estimas. Quando ser notado é uma graça, não modificamos nossas atitudes.

            A sala já estava quase vazia quando Sofia terminou a sua apresentação. Ninguém é bom na primeira vez e apresentar um trabalho valendo notas no final do semestre, beira o terror. Sabemos que ninguém é bom de primeira, mas queremos ser. Esse anseio... Deixa pra lá. Não posso confessar tremor nas pernas, falta de ar, respirar que não respira, fala que não fala...
             Clara foi ajudar Sofia a guardar o datashow. Usava calça jeans que não prendia a atenção.
            — Desculpe. – Sofia disse quando aproximei para guardar a caixa de som.
            — Do quê?
            — Pela última conversa.
            — Já desculpei.
            — Verdade? Ficou me observando enquanto enrolava uma extensão.
            — Posso ajuntar essas pastas? Clara perguntou.
            — Sim. Pegue aquelas também.
            — Onde?  - Clara indagou.
            — Naquela cadeira lá no canto.
            Mais bonita que Clara, chamava menos a atenção pelo seu jeito de vestir. Clara, menos preocupada com os estudos, conseguia menos conteúdo para apresentar um trabalho. Sofia sempre assumia a parte mais complicada das tarefas.

            — Você foi muito bem. Conhece bem sociologia, manja de filosofia, entende Piaget. Você tem bons argumentos...
            Eu disse. Encantado.
            Ela sorriu sem se inebriar com minhas palavras.
            — Gosto de aprender. Leio de tudo. Sorriu.
            Clara passou entre nós com algumas pastas nas mãos. Observei o fio do microfone deslizando como uma cobra enquanto Sofia o puxava. Sobre as poltronas ainda havia cadernos espalhados. Alguns conversavam na porta de saída. Quando iniciamos a apresentação a única porta era de entrada, quando terminamos, porta de saída. O contrário que vinha, era o mesmo que ia, assim como os humanos, aproximamos com as palavras e afastamos com as palavras.   
            Não concordo quando a beleza traz por dentro a ironia. A vida que circula nossos dias possui o poder da transformação, mas por que existem pessoas irônicas? Elas nasceram assim? Quem as transformou?  Rousseau responde: “O homem nasce bom, é a sociedade que o corrompe.”
Tínhamos treze anos quando começamos a estudar na mesma sala. Ela era tímida, sentava na primeira cadeira à minha direita. Por chegar atrasado, encontrava-a sentada quando eu passava. Rareava um olhar que cruzava o meu, não como alguém que já se conhece, mas de quem deseja se conhecer. Tinha olhos castanhos, riso raro com covinhas e uma extrema habilidade para tirar dez em todas as matérias. Eu? Bem, era muito popular para se preocupar com os estudos. Estudamos três anos juntos. Nunca conversamos, mas reparava nela como alguém que obedece aos olhos. Era ela linda, não demonstrava afeição à minha popularidade, também não frequentava a minha turma. Fomos separados de sala por cinco décimos na prova final de matemática. A popularidade desviou os meus rumos. Reprovado em matemática, mudei de escola. Ainda me lembro quando eu parava de conversar na hora da chamada só para ouvir a única professora que não chamava por números e sim pelos nomes. Na voz da professora era o nome mais doce: “Sofia Albuquerque”. E mais doce ainda eu ouvia: “Presente professora”. Assim, sem ironia. Das colegas de sala foi a única que nunca se afastou das minhas lembranças, por quê? Um dia eu explico a razão de um desprezo. O que é diferente contradiz o ego.
O tempo volta? Não. Não volta. Nem as pessoas voltam. Os caminhos se cruzam e as pessoas se encontram. A universidade agora é esse ponto de encontro. Os corredores é o lugar onde nos vemos. E o tempo, um pivô das coisas acontecidas que se tornam reminiscências.

            O meu nome é Aparecido Santos, mas não sou aparecido e nem santo, gosto de estar presente nos lugares onde eu tenha informações que me fazem compreender as pessoas, pois sou uma pessoa incompreendida. Às vezes eu apareço e perco a santidade, como disse, gosto de estar informado.
O tempo que era já não é, mas continua sendo um tempo de falas esperadas, pois todo mundo já gostou de alguém, mas não soube como dizer.