— Todo mundo já gostou de alguém.
Ouvi uma das moças dizendo quando
passavam por mim. No corredor da universidade pessoas se desencontravam.
Sentidos contrários também são caminhos. Com os passos não posso ir e voltar ao
mesmo tempo, mas com os pensamentos posso partir ao mesmo tempo em que retorno.
Não saio de mim. Às vezes até queria, mas tudo que consigo fica na imaginação.
Quando gostamos saímos da primeira pessoa do singular para buscar repouso na
primeira pessoa do plural. O eu busca o nós. O mundo passa a ter sonhos,
sonhados com alguém.
A frase quis que eu continuasse
ouvindo a conversa. Passos ao contrário diminuíram o som, me distanciaram do
fato, mas me trouxeram para dentro de mim. A força dos contrários. Há sempre um
ir enquanto há um voltar. A frase ficou. Parti para um passado, não distante,
mas lembrado. Lembranças lembradas não passam, ficam para aborrecer o presente.
A filosofia desfilou pelo corredor e
abriu caminho em um ser que não sabia se “todo mundo já gostou de alguém”.
Pensava que só eu. Há tantos jeitos de gostar. Sartre já declarou: “Para saber
uma verdade qualquer a meu respeito, é preciso que eu passe pelo outro”.
Dicotomia? Sofia ao passar por mim fez pensar nos amores que desfiz e os que eu
desprezei.
Ela ditava seus conhecimentos à
Clara e o interstício clareou não os meus gostares que de tanto mudar perderam
a essência de perceber o outro, mas iluminou esse ser que já gostou ou gosta de
alguém.
Todos os dias passamos pelo outro.
Alguns ficam, outros passam como os dias. Um dia só é lembrado quando em seu
passar deixa acontecimentos belos ou trágicos.
Do quê lembramos no final do dia?
O corredor não era suficiente
iluminado para ver os olhos de Sofia, também não era um tanto escuro que não me
deixasse ver beleza na inteligência. Há inteligências que fogem da generosidade
dos livros para se esconder nos espelhos. Espelhos aprisionam por fora, a
leitura aprisiona por dentro. Depois que o tempo andou, a beleza que reflete é
a que vem de dentro.
Nós crescemos. Revi Sofia. Num
sentido contrário, penso: há beleza nos contrários. Um beijo nasce de dois movimentos
contrários, um abraço...
Observei os cabelos presos feito
rabo de cavalo. A trança era como a minha impaciência buscando encontrar a
palavra certa para continuar a frase. Ela se escondia atrás de um notebook
rosa. Ouvi a professora no canto da sala avisar que a biblioteca estava para
fechar. Ela acelerou seus afazeres e eu acelerei um diálogo sem rumo que, com
ela, ganhou direção. Cogitei viver no mundo de Sofia. Não na estória de Jostein
Gaarder, mas no encanto que à minha frente dispersava os meus caminhos. Que
caminhos? O do saber. Aprender sempre, a vida me deu esse destino. Aprendo
tanto que no final quando me perco, volto a aprender o que já aprendi. Tempos
novos trazem conhecimentos modificados. Havia uma imensa razão em Heráclito
quando afirmava que não é possível mergulhar duas vezes no mesmo rio, porque o
rio e quem nele mergulha não são mais os mesmos no segundo mergulho. Assim
concebo o meu saber, ele deve se renovar a cada instante.
Sofia abriu um sorriso quando
mencionei a frase. Gesticulou e indagou com espanto. Não disse palavras.
Estalou os olhos e movimentou as mãos do meio para fora.
— Quem te contou isso? Disparou. Sem
brandura.
— Ouvi alguém dizer no corredor.
— Sei. O cavalheiro possui a mania
de ouvir as conversas no corredor?
— Se não quer que alguém ouça, não
diga as coisas aonde todo mundo pode ouvir. – Fiz uma pausa. – Você tá coberta
de razão, todo mundo já gostou de alguém...
— Eu disse para a minha amiga...
— Não, disse a mim também, eu ouvi.
Ela calou-se observando a tela do notebook.
— Há quanto tempo nos conhecemos?
— Há muito tempo, mas de conversa,
há alguns minutos. – Respondi olhando no relógio. Ela guardou o notebook.
Suspirou desolada. Silêncio...
— O quê você ouviu?
— Que todo mundo já gostou de alguém.
– Ela passou por mim, mas antes de se distanciar, refletiu.
— Pena descobrir isso agora, pois
todo mundo já gostou de alguém. – Com ênfase no “todo mundo” disse girando a
cabeça com ar de ironia.
— Todo mundo também já odiou alguém
de quem já gostou...
Eu disse
sentindo o impacto das palavras dela. E sobre o meu raciocínio, acho que ela
nem ouviu. A ira esconde o poder dos ouvidos.
Os passos endurecidos, a paciência
escassa, uma beleza rara e os gestos sem brandura confundiram o meu ser. As
pessoas não são tão dóceis. As pessoas não são tão amargas, as pessoas são...
despercebidas.
Clara clareava o sorriso dos rapazes
quando passava usando aquelas vestes. Os nossos olhares a seguiam como um
espectador em corrida de fórmula-1. Ela cerrava as sobrancelhas. Sendo claro,
ela não gostava. Por quê? Há certos olhares que dizem mais que palavras, mas
admiração é admiração, desejos possuem outro olhar. Mike Murdock já disse: “Não
podemos reclamar daquilo que permitimos”. Há um deleite em nossas estimas.
Quando ser notado é uma graça, não
modificamos nossas atitudes.
A sala já estava quase vazia quando
Sofia terminou a sua apresentação. Ninguém é bom na primeira vez e apresentar
um trabalho valendo notas no final do semestre, beira o terror. Sabemos que
ninguém é bom de primeira, mas queremos ser. Esse anseio... Deixa pra lá. Não
posso confessar tremor nas pernas, falta de ar, respirar que não respira, fala
que não fala...
Clara foi ajudar Sofia a guardar o datashow.
Usava calça jeans que não prendia a atenção.
— Desculpe. – Sofia disse quando
aproximei para guardar a caixa de som.
— Do quê?
— Pela última conversa.
— Já desculpei.
— Verdade? Ficou me observando
enquanto enrolava uma extensão.
— Posso ajuntar essas pastas? Clara
perguntou.
— Sim. Pegue aquelas também.
— Onde? - Clara indagou.
— Naquela cadeira lá no canto.
Mais bonita que Clara, chamava menos
a atenção pelo seu jeito de vestir. Clara, menos preocupada com os estudos,
conseguia menos conteúdo para apresentar um trabalho. Sofia sempre assumia a
parte mais complicada das tarefas.
— Você foi muito bem. Conhece bem
sociologia, manja de filosofia, entende Piaget. Você tem bons argumentos...
Eu disse. Encantado.
Ela sorriu sem se inebriar com
minhas palavras.
— Gosto de aprender. Leio de tudo.
Sorriu.
Clara passou entre nós com algumas
pastas nas mãos. Observei o fio do microfone deslizando como uma cobra enquanto
Sofia o puxava. Sobre as poltronas ainda havia cadernos espalhados. Alguns
conversavam na porta de saída. Quando iniciamos a apresentação a única porta
era de entrada, quando terminamos, porta de saída. O contrário que vinha, era o
mesmo que ia, assim como os humanos, aproximamos com as palavras e afastamos
com as palavras.
Não concordo quando a beleza traz
por dentro a ironia. A vida que circula nossos dias possui o poder da
transformação, mas por que existem pessoas irônicas? Elas nasceram assim? Quem
as transformou? Rousseau responde: “O
homem nasce bom, é a sociedade que o corrompe.”
Tínhamos treze anos quando começamos a estudar na mesma sala. Ela era
tímida, sentava na primeira cadeira à minha direita. Por chegar atrasado,
encontrava-a sentada quando eu passava. Rareava um olhar que cruzava o meu, não
como alguém que já se conhece, mas de quem deseja se conhecer. Tinha olhos
castanhos, riso raro com covinhas e uma extrema habilidade para tirar dez em
todas as matérias. Eu? Bem, era muito popular para se preocupar com os estudos.
Estudamos três anos juntos. Nunca conversamos, mas reparava nela como alguém
que obedece aos olhos. Era ela linda, não demonstrava afeição à minha
popularidade, também não frequentava a minha turma. Fomos separados de sala por
cinco décimos na prova final de matemática. A popularidade desviou os meus
rumos. Reprovado em matemática, mudei de escola. Ainda me lembro quando eu
parava de conversar na hora da chamada só para ouvir a única professora que não
chamava por números e sim pelos nomes. Na voz da professora era o nome mais
doce: “Sofia Albuquerque”. E mais doce ainda eu ouvia: “Presente professora”.
Assim, sem ironia. Das colegas de sala foi a única que nunca se afastou das
minhas lembranças, por quê? Um dia eu explico a razão de um desprezo. O que é
diferente contradiz o ego.
O tempo volta? Não. Não volta. Nem as pessoas voltam. Os caminhos se
cruzam e as pessoas se encontram. A universidade agora é esse ponto de
encontro. Os corredores é o lugar onde nos vemos. E o tempo, um pivô das coisas
acontecidas que se tornam reminiscências.
O meu nome é Aparecido Santos, mas
não sou aparecido e nem santo, gosto de estar presente nos lugares onde eu
tenha informações que me fazem compreender as pessoas, pois sou uma pessoa
incompreendida. Às vezes eu apareço e perco a santidade, como disse, gosto de
estar informado.
O tempo que era já não é, mas continua sendo um tempo de falas esperadas,
pois todo mundo já gostou de alguém, mas não soube como dizer.