sábado, 3 de novembro de 2012

O MENINO QUE NÃO AGRADAVA.




O MENINO QUE NÃO AGRADAVA.
                                  “Só sei que nada sei. - Sócrates”.

A simples raiva virou um choro. Não fora ele. Eles estavam errados. A chuva fina alongava o dia. Carlito esticou-se no chão, nada para latir. Cafu dormia de forma desleixada no sofá. Enquanto a sua mãe não chegava, tinha como companheiros um labrador e um gato da raça ragdoll. Sem nada para fazer, sentou-se no chão do seu quarto, tendo nas mãos uma revista e, no colo, Carlito. Tio Patinhas espalhado por todo o quarto. Na parede, um pôster do Rocky Balboa intensificava-lhe os sonhos. Por alguns minutos manteve os olhos fixos na porta do armário. A frase copiada no cartaz, mas a mensagem, escrita no coração.
A vida é como fazer um filme, você faz comédia, as pessoas vêem terror”.
A chuva cessou. Junior olhou pela janela sabendo que tinha chegado a hora. Todos os sábados atravessava a rua com calçadas quebradas. Caminhava longos minutos em meio aos sobrados com desídias pinturas, chegava à rua dos camelôs e tomava o ônibus na rua das casas galantes. Em outras ocasiões, seguia até a praça, sentava ao pé da estátua e se parecia com ela. Às vezes a observava. O homem retratado ali ajudou tanta gente, mas para ser lembrado precisou que alguém fizesse uma escultura. Uma estátua na praça. A história da cidade se calava no coração dos seus moradores, que de tanto ver o monumento, não reconheciam a história.
O teatro estava lotado. Os atores realmente eram muito engraçados.
SORRIAM ENQUANTO FAÇO GRAÇA”!
Dizia o nome da peça, mas ao final, os atores a completavam com um “pelo amor de Deus”.  
Uma luz acesa no andar de cima? Mãe acordada. As luzes difusas, os carros antigos e os telefones de rua davam vazão a um só pensamento: “O tempo não andou nesse lugar”. Carlito pareceu mais sorrir que latir ao recebê-lo no portão com grades envelhecidas. Pela luz da rua notou que Cafu ainda ocupava o sofá quando abriu a porta.
— Quando você vai arrumar um trabalho decente, menino? – Gritou a mãe lá do quarto.
— Esse é decente, eu gosto. – Disse elevando o gato ao colo.  Cafu pedia colo quando queria comida. O ritual criado pelo bichano favorecia a compreensão do rapaz.
— Você precisa de dinheiro?
— Mãe, você sabe que gosto de trabalhar.
— Quando você se formar sabe que a empresa será sua...
— Eu sei mãe, mas até lá, quero trabalhar.
“Filhos não crescem”, dizia dona Gal sempre depois de uma conversa. Uma mãe crítica, que não perdia de vista o seu “meio homem, meio jovem”. Nos últimos dias Junior andava estranho, impaciente, asqueroso. Já se acostumara a não vê-lo com amigos. Perguntava-se por que, pois, era um adolescente disposto a ajudar qualquer um. Nas horas vagas se ocupava dos colegas de sala para ensinar matérias tipo física, química e matemática. A empresa referida por dona Gal era uma simples ótica no centro da cidade. Dispunha de três funcionárias e um técnico contratado como free lancer. Uma revista local a elegeu como a empresária mais bela do ano, título que ela, aos trinta e cinco anos, sustenta com o orgulho e a confiança de um jogador de futebol.   
Ficaram observando quando ele passou sem cumprimentar as pessoas. Rauane foi a que mais sentiu. Diante dos amigos, ela precisava disfarçar. Junior, apesar de inteligente e cavalheiro, não era o tipo de pessoa que a encantava. Ao passar por ela notou quem lhe segurava a mão. No banheiro, enquanto enfrentava a sua imagem, refletiu sobre um conto do Machado de Assis. “Queda que as mulheres têm para os tolos”. Machado tenta explicar algo que os filósofos estudaram e que ele presenciava naquele momento.
A banda da escola começara a tocar. O baixista alheio não perdia o tempo da música. O hábito nos permite certas habilidades, fazer algo enquanto os pensamentos vagueiam.  Luana sentou ao lado do rapaz quando o evento terminou. Ela sempre fazia aquilo. O irmão estava precisando de ajuda. Ela não suportava a mãe dele, mas amava o pai que tinham.
— Ei! – Sacudiu-lhe os ombros. – Você não precisa ficar assim... Existem outras.
            — Tá tudo bem. Vai passar. – Sorriu.
— Olha, no fim de semana haverá um show de Stand Up... Você poderia ir comigo... Tá precisando sorrir um pouco e o comediante é dos melhores... Já se apresentou na TV... Sabia?
— Eu sei.
— Sei que sabe, mas quero que se alegre um pouco – fez uma pausa enquanto ajeitou-lhe a camiseta sobre os ombros – anda muito triste ultimamente, viu? – Disse, tocando-lhe o rosto com o dedo indicador.
Ela tinha razão. Os fatos, as lembranças diziam isso. Ela não estava sabendo. Não era de velar o passado, mas esse o incomodava e cenas quase recentes impingiam a sua bondade. Depois que a irmã se afastou, deixou que os seus pensamentos visitassem momentos dentro dele. Por que as pessoas se cansam umas das outras? Averiguou. Tendo como principio os acontecimentos atuais. Como a brancura de uma luminária um fato acendeu-lhe as lembranças...
— Acho que já vi isso! – Disse em meio a um sorriso instintivo. Diante dos seus olhos uma menina chantageava a mãe. Correu os olhos pelo balcão de vidro, lá estava o motivo. A mãe envergonhada diante da vendedora que, radiante, explicava as funções de um mega celular. Olhou para a sua amiga. Na escola, era tão doce.
— Por que você faz isso? – Disse segurando a mão dela.
— Eu preciso.
— Mas precisa de um desses?
A menina espantou-se. Ele era o seu melhor amigo, mas não podia interferir em suas vontades. Por ternura, aceitou responder.
— Eu vou levar esse. – Disse a mãe à vendedora. Mais para que ele ouvisse.
— Sim, eu gostei dele. Tem todas as funções. – A menina respondeu com um meio sorriso.
— Sim. Ele é muito bom mesmo, mas, você precisa de todas essas funções?
— Digamos que não vou usar todas, mas se um dia eu precisar...
— Quanto tempo dura esse “se um dia”?
— Por que essa pergunta?
— É porque quero aprender.
— Não sei. Nunca pensei nisso.
— Então responda à primeira pergunta. Eu realmente quero entender porque as pessoas cedem às necessidades. A necessidade escraviza as pessoas. Você realmente precisa desse?
— Eu não quero mais este. – Disse, erguendo o celular quase antigo. Ele sabia o tempo. Há três meses entrara com ela e a mãe numa loja. Ela se encantara com aquele.
— Nem tudo que queremos é bom.
— Sim, eu sei disso!
— Desculpe, eu... Só quero entender.
A menina andou pela loja observando as novidades, mas não as via. As perguntas dobravam seus sentimentos. Precisava realmente de algo caríssimo?
A cicatriz no supercílio esquerdo. O espelho o fez voltar. Num tempo ainda mais distante. Num tempo em que os seus três irmãos não tinham respostas para todas as suas perguntas. Desprovidos do conhecimento, agrediam. As perguntas têm o poder de despir as pessoas. Para não ficarem nuas, atacam. Lavou o rosto. Lembranças bem lembradas não escurecem o presente. Sorriu. Ainda conseguia pensar. Aceitou a situação e compreendeu que um simples aparelho celular pode esconder uma pessoa dentro de si mesma ou revelar seu caráter.
— Você pergunta demais... E pelo que sei, você não é tão bobo assim. – Rajii respirou antes de dizer, e sem sotaque. – Olha só... Você perguntou a minha opinião... E... como amigo, na boa, cara, sem ofensa, você ajuda todo mundo – fez uma pausa – não acha que tá na hora de você ajudar a si mesmo? Olha só o que dizem de você!
— Você acha que ela mudou depois daquele dia na loja?
— Você com suas perguntas a fez desistir de um mega celular. E ainda mais, fez a mãe dela parecer que não tinha condições de comprá-lo.
— Que conceito é esse, cara?! De onde você tira essas ideias?
— Oh cabeção, há quanto tempo eu ando com você? Às vezes falo muito, mas eu penso. E também nós três sabíamos que a mãe não tinha condições de dar à filha um aparelho daquele.
— Três?!
— Uh! Eu, você... A Rauane...
Junior começou a sorrir. Não de alegria, mas da luz que clareava um passado sombrio. Se pudesse mudar o mundo, mudaria o seu próprio mundo.
Rajii sentou ao lado dele enquanto o professor falava. Fazia sentido, mas o seu amigo abusava nas indagações. Junior tinha noção do rumo que a sua vida tomara. Vinte e quatro horas é muito tempo para um dia. A bíblia não menciona o tempo da dor, mas Jó aprendeu isso[1]. Ele estava aprendendo também. No final somos o resultado de um processo. Refletiu sem muita convicção no que pensava. Um dia você acorda e percebe que o mundo não mudou, as pessoas modificaram-se.
— Não é porque no passado os filósofos questionavam tudo que a minha geração se dá ao luxo de se sentirem sábios apenas com as respostas. Por que temos mais respostas que perguntas? – Concluiu o professor com desdém.
— Já encontraram os culpados? – Junior quis saber. Rajii apenas meneou a cabeça.
— Fizeram ameaças.
— Eles sabem que não foi você quem os denunciou.
— Mas denunciaram os caras e eles estão bufando de raiva.
— Tem quase quinhentos alunos nessa escola. Por que pensam que foi você quem falou? Pode ser um desses que compram drogas deles, nunca se sabe...
O Espetáculo ia acontecer à noite. Luana ligava com intervalos. Precisava saber se o irmão ia estar com ela no show. Junior estava com a cabeça em outra coisa. Felipe o ameaçava por ter sido denunciado e ainda para afastá-lo da Rauane. Alguém denunciara o grupo dele alegando tráfico de drogas dentro do colégio. Junior, por preferir sempre a justiça, foi acusado por injustiça. “É muito mais fácil não acreditar num justo que duvidar dos injustos”, cogitava em seu coração, lembrando que sempre fora tratado assim, como um impostor.
No momento em que o telefone tocou novamente, uma notícia explodiu na TV.
— Oi! – Pausa – espere um pouco... Hein?! – Silêncio do outro lado da linha. – Eu sei! Tô vendo aqui. Será ele mesmo? Ok, vou correndo lá pra ver... Sim, eu vou até lá... Sim... Um beijo! 
Junior sentou frente à TV. Duas emoções invadiram-lhe a alma. Primeiro, descobriram quem denunciou a gangue do Felipe. Esse sentimento lhe deu contentamento. Segundo, Rajii o seu amigo, fora preso em flagrante traficando drogas dentro da escola. Esse sentimento lhe trouxe pesar. Nunca se sabe quem realmente está conosco. Logo ele que se colocava como o senhor do bem. Rajii, em busca de território, acusou a gangue do Felipe. Rauane, revoltada vendo o namorado indo preso, denunciou aquele que a jogou contra o seu melhor amigo. Rajii era o maior responsável por causar intrigas entre as pessoas. Junior, encostado numa árvore, observou o seu amigo, adolescente como ele, sendo preso. Rajii atiçava o descontentamento alegando que Junior perguntava demais. Ele tinha certa razão, mas sobre as perguntas, refletiu numa frase que aprendeu. Retirou da mochila um bloco de papel e anotou:
Aquele que perguntava, perguntava por que dizia: Só sei que nada sei.

Enquanto caminhava rumo ao show, Junior observava que as pessoas aguardavam eufóricas o momento do espetáculo. Os seus inimigos estavam lá, os raros amigos também. Pensando, encontrou respostas para as suas indagações. A bíblia não diz, mas quando Pedro caminhou sobre as águas[2], deixou dentro do barco três tipos de pessoas: as que aprovaram a sua atitude, as que a reprovaram e as que não tomaram partido: essas jogam conforme os resultados.
A plateia explodiu em aplausos quando ouviu:
SORRIAM ENQUANTO FAÇO GRAÇA... PELO AMOR DE DEUS”!
O comediante sentou-se feliz diante do espelho, certo de que fazia um grande trabalho. Luana sentou-se ao lado dele. Encantada, observava a retirada das máscaras.
— Por que não disse que era você?
— Era o meu segredo.
— Por isso recusava a vir comigo?
— Você queria me ver sorrir, mas como sorrir se sou o comediante?
Luana conheceu ali o seu irmão caçula. Podia odiar a mulher que roubou o seu pai, mas amava o irmão que tinha.
— Estão aí os que te odeiam. – Disse, apontando em sentido à plateia.
— É, eu vi.
— Quando souberem quem é a pessoa que eles aplaudem...
— Não se preocupe, os homens tendem a amar as máscaras.   
Sorriram.


[1] Jó-1,1
[2] Mt 14,22