terça-feira, 31 de dezembro de 2013

ESQUINAS


Gente que arrasta os pés tendo nas mãos porções de sacolas. É assim quando me esquino na esquina. Cada um muda os passos de um jeito. As vitrines arrastam os olhares. Impossível não vê-las, não desejá-las, não contemplá-las. Contradizem-nos. É isso! Elas contradizem-nos. Saímos para vê-las, não para consumi-las. Os bolsos rezingam. Como eu, ocos. Sou duas ruas. É assim quando me esquino sem querer me esquinar. As pessoas vão e vêm. Algumas trazem a cara amarrada, outras abrem caminhos em mim. Com um simples sorriso, tiram de mim as esquinas e também as anfibologias.
Abro estradas no meu caderno, mas não uso máquinas, apenas palavras. Desenho rostos. Penso conhecê-los. À distância nossas procuras são iguais. Cismo com o tempo: será que vão passar as marés antes que as estações cheguem no horário combinado? De certo chegará. Chegam as chuvas, os ventos também. Na primeira porta, ingresso. Estou diante dos meus medos. Ela será a minha direção. Meus planos serão narrados primeiro a ela. Serei capaz de levantar às madrugadas para tal fato. Noto, através do vidro, não há mais chuva e nem vento. Do lado de fora o sol sorri com um riso que desata o mundo. Sinto o seu riso dourando as ruas e também as minhas esquinas. Cheio de futuros, passo pela porta que me acolheu quando as estações mudaram. Como um ato de devolução, toco a rua com os pés. Do outro lado da vitrine intuo: já não sou mais o mesmo, vejo pessoas que arrastam os pés tendo as mãos cheias de sacolas, enquanto disparo risos pela rua, tendo nas mãos uma Agenda nova.

domingo, 22 de dezembro de 2013

FOLHA SECA

                                               Foto reprodução


... Chegou, por alguns instantes... Foi... Acrescentando o nada, modificando o tudo que pensava ser tudo quando era nada e nada voltou a ser, metade de um tempo, sem tempo.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

O OUTRO LADO DAS PESSOAS (História para aquecer o coração 2)

               
                                                         
 Minha avó tinha uma inimiga chamada senhora Wilcox. Elas se mudaram, recém casadas, para casas vizinhas, numa pequena cidade onde tinham ido viver. Não sei quem começou a guerra – foi muito antes de eu nascer – e não sei se quando eu nasci, uns trinta anos depois, elas mesmas se lembravam de quem começara. Mas o duro embate continuava, com amargas batalhas.
Era uma contenda travada sem um pingo de educação. Era uma guerra entre senhoras, o que significa guerra total. Nada na cidade escapou das conseqüências. A igreja de trezentos anos, que sobrevivera à Guerra Civil, quase foi ao chão quando vovó e a senhora travaram a batalha pela presidência da Liga das Senhoras. Vovó ganhou este combate, mas foi uma vitória sem valor, pois a senhora Wilcox, derrotada, demitiu-se da Liga num acesso de raiva. E qual é a graça de dirigir alguma coisa se você não pode humilhar sua inimiga mortal?

A senhora Wilcox venceu a batalha da Biblioteca Pública, conseguindo que a sobrinha Gertrude fosse indicada como bibliotecária no lugar de minha tia Phyllis. No dia em que Gertrude assumiu o posto, vovó parou de apanhar livros na biblioteca – dizendo que estavam “cheios de germes” – e começou a comprar os livros que queria ler.

        A batalha da escola secundária terminou empatada. O diretor conseguiu um emprego melhor e saiu antes que a senhora Wilcox o tirasse de lá ou vovó conseguisse mantê-lo lá para sempre.

Além dessas batalhas mais sérias, aconteciam constantes ataques e recuos na linha de tiro. Quando éramos crianças e visitávamos vovó, parte da diversão consistia em fazer caretas para os terríveis netos da senhora Wilcox – que revidavam com igual virulência – e roubar uvas do lado da cerca dos Wilcox. Corríamos atrás das galinhas e púnhamos bombinhas nos trilhos do bonde bem em frente à casa dos Wilcox com a doce esperança de que, ao passar, o bonde provocasse uma explosão que fizesse a senhora Wilcox morrer de susto.
Num dia histórico, pusemos uma cobra na calha de chuva dos Wilcox. Minha avó ainda ensaiou um protesto, mas sentimos sua solidariedade implícita, bem diferente dos veementes “nãos” de mamãe, e prosseguimos na nossa carreira de crianças endiabradas.

          Não pensem nem por um minuto que só havia um lado nessa guerra. Lembrem-se de que a senhora Wilcox também tinha netos bem mais valentões e espertos do que os netos de vovó. Os pestinhas puseram gambás no porão de sua casa e esta foi a agressão mais suave. O fato é que qualquer incidente na casa de vovó sempre foi atribuído aos Wilcox.

Não sei como vovó poderia ter suportado todos esses problemas se não fosse pelo caderno feminino do jornal diário de Boston.

          A página era uma instituição maravilhosa. Além das usuais dicas de cozinha e conselhos sobre limpeza, havia uma seção de troca de cartas para que as leitoras pudessem desabafar seus problemas. Para que o anonimato fosse mantido, as cartas vinham assinadas com um pseudônimo. O de vovó era Arbusto. Outras leitoras que tivessem o mesmo problema respondiam, dando a solução encontrada e também usando seus pseudônimos, como Aquela que Sabe, X ou qualquer outro. Muitas vezes, exposto o problema, as leitoras ficavam trocando cartas por anos através do jornal, falando sobre filhos, doces em conserva ou a mobília nova da sala de jantar.
            Foi isso que aconteceu com a vovó. Ela e uma mulher chamada Gaivota se corresponderam por vinte e cinco anos, e vovó dizia a Gaivota coisas que jamais confessara a ninguém – como a vez em que contou que pensava estar grávida (e não estava) ou quando meu tio Steve pegou piolho na escola e vovó ficou profundamente humilhada. Gaivota era sua amiga do coração.

Quando eu tinha dezesseis anos, a senhora Wilcox morreu. Numa cidade pequena, mesmo que você deteste a vizinha, faz parte das regras se oferecer para ajudar a família de luto, no que for necessário.
Vovó atravessou o gramado, deu os pêsames às filhas da senhora Wilcox e começou a ajudá-las a limpar a já imaculada sala de visitas para o funeral. De repente, viu aberto sobre uma mesa, num lugar de destaque, um enorme álbum de recortes. Para seu mais absoluto estarrecimento ali estavam coladas, em colunas paralelas, as cartas dela para Gaivota e as de Gaivota para ela. A maior inimiga de vovó fora, na verdade, sua melhor amiga.
Foi a única vez que me lembro de ter visto minha avó chorar. Eu não sabia naquela época por que ela estava chorando, mas agora eu sei. Chorava por todos os anos perdidos que não poderiam ser recuperados. Naquele momento, fiquei tão impressionada com as lágrimas de minha avó, que não me dei conta da descoberta fundamental que eu começava a fazer. Uma descoberta que se transformou em convicção e que tem me ajudado imensamente a viver:
As pessoas podem parecer insuportáveis. Podem parecer egoístas, mesquinhas e hipócritas. Mas, se não procurarmos olhá-las sob outra perspectiva, nunca seremos capazes de descobrir que são também generosas, amorosas e bondosas. E, se não lhes dermos a oportunidade de revelarem seus aspectos positivos, ficaremos para sempre privados do bem que eles podem nos proporcionar.


Louise Dickinson Rich

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O TEMPO NA PAREDE






O TEMPO NA PAREDE.

... O tempo na parede, um coração sem lugar. Os ponteiros retornam, mas não são como eu. Eles esperam encontrar o doze. Eu espero encontrar a minha metade, extinguida num desastre de avião.
Faltam os móveis. A casa ficará para trás, o quintal modificará, os muros virarão paredes, mas a rua será a mesma. As árvores crescerão, os postes serão trocados. O tempo dirá. A rua quando receber o asfalto será uma avenida dentro de mim. Por ali passarão as lembranças, as saudades, a vida. Dizem que quando as pessoas crescem sentem pesares. Eu carrego uma rua dentro de mim.

O céu, cinzento todas as manhãs. À tarde o neon, inconfundível. Tudo muda. Mesmo sem buscar um novo lugar. O sol nunca dorme. Os dias aqui são claros enquanto a noite passeia em outros lugares. Aqui parece amanhecer mais tarde. Mesmo que eu não perceba, o sol peleja com o nevoeiro.
Vejo as nuvens se desenhando, obedecendo ao sol.
— Mariah, deixa esse diário um pouco. Venha ver uma coisa!
— Espere. Falta uma frase... Mas... Que coisa?
— Venha ver.
— Tá bem, tô indo.
Os minutos avançam e a minha espera se desespera.
— Olha, você tá perdendo...
— Mas que insistência! Me deixa em paz. – Mariah respondeu se ajeitando e ajuntando as pernas. O diário a roubava de mim.

A minha poltrona é a número 12. Doze também é a rua que não sai de mim. Tenho doze anos e já são 12h00min. Juntando o meu nome com o dela, doze letras. Mariah e Antony. Sou nascido aos doze de dezembro, ela, vinte e um do mesmo mês. Há um instante na vida em que tudo fica exato? Perfeito pelo menos duas vezes ao dia? Não vou terminar o meu prato com doze garfadas. Poderia até ser assim, mas no restaurante em que me encontro há mais de quinze pessoas. Nem tudo é exato. Se fosse, que graça teria?

A brincadeira de esconde-esconde, ela se esconde junto a mim. Vejo nossas sombras unidas. A lua revela nossos desejos, tímidos.
— O que você queria que eu visse?
— Não importa mais.
— Ah! Importa, sim.
— Não sei não, hein?!?!
— Não faça essa cara, eu não gosto.

O ônibus pára. Um cara com feições trogloditas ocupa a poltrona do outro lado. Ele vira para guardar a sua bolsa no bagageiro acima. Percebo que há um número 12 na sua camiseta.
— Sim, jogo vôlei.
— Mas eu não perguntei.
— Mas ia perguntar.
— Sei não, hein...
— Então por que me encarou?
— Nada...
Encolhi na poltrona.
Doze.
Caminhamos pela estrada. Ela tem um diário e canetas coloridas. Com ambas as mãos os prende na altura dos seios. Mergulho num silêncio que é só meu. Ela fala compensando a falta de palavras. A sua voz não cobre o crepitar dos seus passos dissolvendo o cascalho.
— É aquela ali? – Disse apontando um ipê florido.
— Não.
— Falta muito?
— Alguns passos.
— Tá me deixando nervosa.
— Tô não. Você é nervosa sempre.
— Uh! Tô falando da ansiedade.
— Mas também é impaciente.
— Você que é impaciente... Não espera quando me demoro aos seus pedidos.

Meu pai conversa com o troglodita, mas apenas resmunga. Escuto um “sei”, e “runrum”. Meu pai é um músico. Não fala muito. Quando está ausente fica me ligando; quando presente, fica ausente e não liga.

— Amoras!
— Eu conheço amoras. – Ela diz. Falando mais com as mãos.
— Sei que conhece, mas eu quis dizer.
— Você fala como se eu não soubesse.
— Você nunca tá pronta...
— Pronta pra quê?
— Pras coisas que eu quero lhe mostrar.
— Tá vendo, já ficou irritado.
— Olha como você tá falando...
— Tudo bem. Desculpe. – Ela se afasta alguns passos e fica a ver as colinas. Os outros foram para outras árvores. Os pássaros, nossa companhia. Percebo o vento em seus cabelos. Eles se movem como a minha certeza de que não vou conseguir ler o livro escolhido por ela.

O ônibus pára novamente. Troglodita saúda o meu pai. Doze. Percebo quando descem os seus amigos. Frente a um ginásio. Ouço a sua voz ecoando em minha cabeça. “Sim, jogo vôlei”. Precisava dizer? Não pasmem. Contei mentalmente as doze letras.

— Por que ficamos com o pé de amoras?
— Saiu no sorteio. – Falo já esperando uma ofensa.
— Não gosto de amoreiras, mas percebo que só nós temos a árvore diferente.
Não havia observado. Lancei um olhar de fazendeiro observando o gado. O meu melhor amigo ficou com um dos pés de jambo, os demais se contentaram com as mangueiras.
Para pôr fim à guerra dos sexos, uma professora quis aproximar os meninos das meninas antes que houvesse o pior. Foram selecionados os brigões, doze. Seis casais. Cada menino teria que escolher uma árvore. As meninas escolheram os meninos. – Se essa tarefa fosse dos meninos? Homem não sabe escolher com o coração, mas com os olhos, disse a psicóloga batendo as mãos nos quadris. Depois de escolhida a primeira etapa, no sorteio, as meninas escolheriam um livro romântico para os meninos e os meninos teriam que escolher um que falasse de futebol. Valendo pontos e a permanência na escola, teríamos que sentar juntos embaixo de uma árvore, trocar ideias sobre o que fora lido e fazer um relatório.

Vejo a rodoviária. Chegamos. Meu pai alcança primeiro a guitarra. A mala logo a seguir. Disse para que eu cuidasse das minhas coisas. Com doze anos já com malas para cuidar. Meu pai precisa de mim. A minha tia Carla veio nos receber no portão. Abraçou-me e, com um beijo, disse que eu já estava um hominho. Fiquei feliz pelo “hominho”. Quando entramos lancei um olhar de adaptação por toda a casa. Meu olhar me fez bem. Teria aquela magnífica casa para morar e uma linda tia que gostava de mim. O meu pai não parava em casa, compromissos da banda. A minha mãe casou-se e o meu padrasto não me aceitava. Fui morar com o meu pai, que morava em lugar nenhum.

— Obrigado, Mariah. – Disse, avaliando o livro.
— Espero que goste. – Ela é linda, pensei. Qualquer coisa que viesse dela eu ia gostar.
— Espero que você goste desse aí também.
— Sim.
Jeito descontraído, um olhar que muda um sentimento e falar de quem está ansioso. Leio Mariah assim. Ela se encosta para ler. Os cabelos cobrem o seu rosto. No momento em que desejei tantas coisas, quis ser um desenhista para traçar todos os detalhes dela lendo um livro e recostada em uma árvore. Fotografia é muito urgente, uma câmera poderia ocultar detalhes que os meus olhos queriam levemente rabiscar.

Os três primeiros dias de aulas meu pai me deixou na escola. Voltava de Van.
Antes que o relógio marcasse meio-dia, vi a minha tia conversando com a vizinha. Relutei a ir com a vizinha para o colégio. Meu pai não estava na cidade e a minha tia não podia, habilitação vencida. A relutância durou até notar que a filha da vizinha seguia comigo para o colégio.
— Você é do grupo SM? – Disse sem me encarar nos olhos.
— Sim.
— Tá explicado.
A mãe dela conferiu os nossos cintos antes de fechar o portão.

Sou um homem parado frente a um relógio na parede. Parte de mim ultrapassa o 12, mas se move como os ponteiros. Do que valem as lembranças? Acho que para esconder o futuro. Esse mesmo relógio marcava 12 horas quando aconteceu o nosso primeiro beijo. Depois de cinco anos a casa ainda é a mesma por dentro; por fora, uma pintura nova.

Mariah é comissária de bordo e chega daqui a pouco no vôo das 12 horas. Enquanto a espero, relembro os nossos dias. Eu trabalho com vendas e estou aqui com a mãe dela. Estamos felizes, amanhã será o nosso casamento. A festa acontecerá na rua doze Nº 1212, casa dela. Há um relógio preso no alto do saguão no aeroporto. Na verdade há um relógio dentro de nós contando um tempo feliz. Pelo vidro da sala eu vejo... O avião pousando como um pássaro. Vejo ao meu lado pessoas se movendo... Vejo o relógio marcando 12 horas... Vejo, alguns segundos depois, pessoas como eu desesperadas ao ouvir uma explosão na pista. As chamas propagam como as minhas lágrimas. Dissolvem o que há na aeronave. Estou frente ao relógio procurando respostas. Será que ela não está em outro voo? Bombeiros se revezam.
Frente ao relógio. Fecho os olhos e a vejo chegar, num avião que não chegou.



domingo, 8 de dezembro de 2013

DESENHOS


                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        FOTO DE REPRODUÇÃO                                                                                                               
 DESENHOS.

Nas paredes do ser que habito
Sufocando o grito
A saudade se esconde.

A tinta derramada
As cores esparramadas
Responde:

Sou metade que espera
A parte inteira
Da metade minha.

Desconhecida
Procurada
Entre linhas.

Nas paredes do ser que habito
Nas palavras dos versos escritos
No risco arriscado do querer

Rabisco a presença
De um instante na ausência,
Mas... você não vê...




domingo, 1 de dezembro de 2013

18 ANOS


17 de Agosto, 1993.
O banco, uma enorme fila. O horário de almoço estreitava-se. Na demora, o cansaço, no estresse, a espera. E tinha ainda o sobrinho apressando a todo instante, pois precisava almoçar e tinha que esperá-lo. Mas tudo isso se findou num segundo quando um verde par de olhos encontrou os olhos do rapaz.
— O que posso fazer por você? Atrás de um balcão, ela disse ajuntando as mãos e com um sorriso daqueles que parece dizer: “adoro você”. – “Preciso que fique comigo” – pensou em dizer, inebriado com o carisma da moça, mas nada disse. Apenas abaixou os olhos e leu no seu crachá: SARA REGINA, ESTAGIÁRIA. Nome bonito e composto. O jeito era de quem passa por alguém e deixa um pedaço grudado para não ser esquecido. Sara Regina não passou, instalou-se em seus pensamentos. Ele entregou-lhe os documentos necessários para abrir uma conta.
— Espere um minuto. – Ela falou novamente usando o sorriso “adoro você”. Ele nada falou. Depois do tempo ali esperando, esperar um minuto perto da graciosa moça era melhor que todos os minutos vividos. Observou ela abrir gavetas, fechá-las, digitar com velocidade, fazer anotações. Vez em quando parava tudo. Demorava os olhos nele, lançava um “adoro você” em forma de um riso e voltava a fazer o seu serviço. A simpatia não era para ele, exclusiva. O seu encanto natural contagiava a todos. A antecedente senhora recebeu a mesma cordialidade. Encantada, se despediu e seguiu pelo corredor feliz com a atendente.
— Pronto moço. – falou devolvendo os papéis. – Daqui a três dias você pode vir retirar o seu cartão.
— Com quem devo falar?
— Comigo.
Cabelos longos, amarelos. Mãos finas e uma pequena rouquidão na fala. Detalhes que o rapaz guardou. Ela não tinha pressa de pronunciar as palavras. Quando alguém falava, esperava até que o silêncio indicasse o momento certo de dizer.
— Moço, a sua identidade. – disse saindo detrás do balcão ao alcance dele.
— Obrigado.
Olharam-se por alguns segundos...
— Me deixe voltar. – sorriu embaraçada – tenho muito trabalho...
— Ok, a gente se vê... Quinta-feira?!
— Ah, sim.
Mãos amigas se tocaram. O olhar também. Naquele dia perdera o almoço, mas ganhou uma razão. Sara Regina. Na quinta-feira iria sozinho, sem a ajuda do sobrinho, quem sabe ficaria um pouco mais à vontade ao redor daquele encanto?
A tarde que passava sem pressa não apaziguava os seus pensamentos, que velozes insistiam na imagem verde de um olhar e num sorriso que dizia “adoro você”. Por várias vezes tentou afastá-la dos seus pensamentos. Aquilo tinha jeito de sonho e ele não estava preparado para sonhar um sonho daquele. Cansado de brigar com os pensamentos, deixou que sonhasse o seu coração. “No final, a gente se prende mais aos sonhos que na realidade deles”. Refletiu. Toda emoção depois de um tempo deixa de existir, ou perde a força do primeiro encanto.
Quando o dia chegou ao final de uma quarta-feira sem pressa, ele lembrou que precisava comprar uma gravata, pois a que tinha não combinava com a roupa que usaria na formatura do seu sobrinho.

 19 de agosto de 1993.
Poucas pessoas havia no banco quando chegou a vez do rapaz. 
— Oi. – Falou ainda de pé. – Vim retirar o meu cartão. – sentou-se.
— Ah, sim. – Respondeu com aquele sorriso. – Está aqui. – Proferiu com brandura depois de retirá-lo do meio de alguns outros documentos.
— Tão rápido assim?
— Sabia que viria.
— Por quê?
— Sou nova aqui, mas de alguns rostos consigo lembrar, o seu, por exemplo, não esqueci. – Sorriu.
— Não sabia dessa minha qualidade.
— Qual?! – Indagou, mirando o rapaz com os olhos semicerrados.
— Um rosto inesquecível.
— Ah! – Sorriu abanando a mão. – É um jeito de dizer.
— Obrigado. Ah! Também não vou esquecer seu rosto.
Ela disparou uma risada.
— Bobo! – Falou mirando o rapaz, e sem mudar a direção dos olhos, anunciou: – Próximo!
Quando deixou o banco, despertou nele o desejo de voltar. Não disseram muitas palavras e, bem por isso, compreenderam a linguagem dos olhos. Ela se lembrou dele, isso já era um bom começo. Quando os corações se apreciam, os desejos recomendam os caminhos.
Depois que atendeu o último cliente e o banco já havia fechado, ela verificou a ficha do rapaz. — João?! – Riu. – Ele tem nome antigo! – Falou a si mesma. Os caminhos não eram distantes, nem as possibilidades, nem as certezas. Sorriu ao descobrir que moravam na mesma rua, continentes opostos.
Dezenove de setembro daquele ano. Somente quando ele foi cantar a última música é que percebeu, ela estava na igreja ouvindo a missa. Ele cantou com os olhos fechados e, para não errar, permaneceu com eles fechados. Poderia se desligar da música e errar o tempo. Será que depois de alguns dias ela ainda se lembrava dele? Indagou-se por dentro.
Ele enrolava os cabos quando a viu se despedindo na porta. Não correu, mas acelerou os passos de tal forma que parecia correr.
— Oi! – Disse estendendo a mão. – Lembra-se de mim?
— Sim. Do banco, né?
— Sim. – Pausa. – Não sabia que você frequentava essa igreja...
— Ah, eu frequento aquela no final dessa rua – disse apontando o lado. – A minha mãe frequenta aqui.
— Quem é a sua mãe?
— Aquela. – Apontou a dona Maria, a mulher que dirigia a missa. Ele sorriu.
— Você mora aqui por perto?
— Na mesma rua em que você mora, só que láááá... na ponta. – Fez um largo gesto para indicar a distância oposta.
— Como sabe a rua que eu moro?
— Pelos documentos do banco.
Sorriram.

Tudo muda. Precisamos estar atentos às mudanças e nos adaptar a elas. Ela não tinha sonhos diferentes. Toda mulher sonha com um grande amor, pensa em se casar um dia e cogita ter filhos. Prestes a completar dezoito anos, nunca namorara. Dizia que namoraria para casar e só depois dos dezoito. Um dia depois do seu aniversário, mas só depois dos dezoito, brincava. Vivia em paz com os seus sentimentos. Driblando os interesses dos rapazes, sentia-se segura.
17 de outubro, 1993.
João não esperava encontrá-la na festa. Como ela, foram convidados pelo anfitrião, mas não conheciam ninguém. Naquela noite ele conheceu Selma, irmã de Sara, que se embrenhou no meio dos convidados esquecendo-se dela. Sozinhos, afastaram-se para conversar à distância em que podiam ser vistos. A luz que emanava da janela iluminava o banco onde estavam e a música não cobria o som da conversa. Sentados a distância que cabia alguém entre eles, se conheceram.
O coração costuma seguir por caminhos que os pés não imaginaram caminhar. Ela percebeu isso quando ele pousou a sua mão sobre a dela. Ele entendeu quando ela disse não querer namorar, mas mesmo assim insistiu. Quem sabe mudaria de ideia? Aceitou. Mas beijos, só depois dos dezoito. Ele concordou. Sabia que faltava um mês, e que se não aceitasse as regras, poderia perder a oportunidade de ficar perto dela. Ainda bem que o tempo vai moldando o coração e a gente vai anotando o que é lindo. Tinha aprendido com os erros dos outros. Mas, como mostrar aos outros que estavam namorando? O namoro precisava de proteção. Ela entendeu e, como estava apaixonada, quando saíam, se davam as mãos. Não são as circunstancias que mudam um coração, mas a forma de conviver com elas.
Na manhã do dia 3 de dezembro não houve sol. À tarde, uma garoa fina perseverou por algumas horas, intercalada por acanhados jorros de sol. Ele foi buscá-la no serviço a fim de atrasá-la um pouco para que recebesse uma surpresa. Ela mostrou a ele alguns presentes que ganhara dos colegas de serviço. Deu ênfase ao mostrar o livro “Feliz Ano Velho”, de Marcelo Rubens Paiva, que ela tinha curiosidade em ler e que ganhara do gerente do banco.
Em cima do bolo não havia velas, as velas estavam apagadas ao lado. Depois que os amigos cantaram, ela acendeu-as. Quando acenderam, as chamas propagaram formando o número 18. Nas festas de aniversário costumam-se apagar as velas, mas não seria melhor acendê-las? Afinal, precisamos da luz para clarear a vida e o discernimento, para recebermos os dias que vêm e que não sabemos como serão.
Depois que os amigos foram embora eles sentaram no banco frente à casa dela. Ele tirou do bolso um pequenino embrulho e entregou a ela. O presente, uma corrente com um pingente em forma de um coração. Ela sorriu e por alguns segundos observou o pequeno coração de ouro.   
— Obrigado pela surpresa.
— Não fui eu que preparei, foram a sua irmã e a sua mãe.
Ela observou novamente a corrente, deu um sorriso e pediu que ele a colocasse em seu pescoço.
— Estava pensando comprar uma exatamente assim. Você me deu o seu coração. – sorriu. Estava feliz e, por se sentir assim, queria tantas coisas, mas escolheu aquele momento para ser único em sua vida. É difícil pensar nas palavras quando o amor chega. Os gestos falam por tantas coisas.
— Posso fazer uma pergunta?
— Sim.
— Na verdade é um pedido.
— Tudo bem.
— Quer namorar comigo? – Ela riu.
— Você já me fez esse pedido e eu aceitei, lembra?
Ele sorriu. Sabendo que tinha mantido o protocolo. As certezas se uniram aos sonhos dela. Aconteceu o primeiro beijo. Não fora um dia depois como dizia. Os desejos têm pressa. Os dois corações estavam ali acentuando a urgência deles. Seus planos se realizavam. Ele era lindo, rapaz de respeito e, como ela, se preocupava com o futuro.
— Se você fez o pedido, qual é a pergunta?!
— Por tudo que conversamos, eu cheguei à conclusão de que preciso... – Procurou as palavras – De alguém como você o tempo todo ao meu lado.
— Sei.
Seus olhos procuraram os dele. Os segundos seguidos encontraram o silêncio. Com um movimento de cabeça ela fez um “e daí” como gesto.
— Quer se casar comigo?
Avermelhou-se. Acanhada, segurou as mãos trêmulas do rapaz. Ela queria casar-se no mês de maio, porque dizem ser o mês das noivas. Tudo estava indo rápido demais. Quando o amor chega, traz junto incertezas, que duram um tempo incerto.
Quatro dias depois. Oito de dezembro.
— A formatura é no dia dezessete de dezembro. – Caio falou ao seu tio com um calendário nas mãos. – É numa sexta feira e, no sábado à tarde, marcamos um jogo de futebol no ginásio, vamos?
— Não vou poder, tenho um ensaio na igreja.
— Não pode faltar?
— Não.
— Que pena, ia ser legal. E a Sara, vai ao ensaio também?
— No sábado, eles vão se reunir numa chácara. Revelação do amigo secreto com o pessoal do banco. Vamos nos ver à noite na casa dela.
— Ah, será o dia do seu noivado, já estava esquecendo.
— Sim e, não vai dizer que desencalhei com apenas vinte e dois anos.
— Eu não tô dizendo nada...
A ansiedade caminhava nele sem deixá-lo ver o horizonte. No final do dia, o sol estava cercado por nuvens escuras. A luz no meio, separava as camadas e era como tela de cinema, mas ele nada via. Queria olhar e estava se olhando por dentro. A felicidade o trouxera até ali e tinha data marcada, Sábado, 18 de Dezembro, 1993. Iam ficar noivos, em maio se casariam.
João acabara de chegar do ensaio quando o telefone tocou. Do hospital, o seu cunhado avisara, Caio havia batido a cabeça ao cair. Carecia que ele ficasse com o sobrinho por algumas horas, pois, precisava mover alguns documentos para levá-lo para fora da cidade.
A noite chegara e, na sala de emergência, acompanhava o sobrinho que, dormindo, aguardava as observações médicas. Preocupava-se com o sobrinho, mas não tirava da cabeça que logo mais à noite ficaria noivo. Por volta das 18 horas alguém entrou gritando no corredor.
— Emergência! Cadê a emergência? – O homem não continha o desespero.
— O que foi, moço? – Falou a única enfermeira por ali naquele momento.
— Tem duas pessoas mortas ali e dois feridos! – Disse apontando para o carro às suas costas. – Ficou um pra trás, preso nas ferragens, já sem vida.
Seres humanos são estranhos, ninguém quer sofrer um acidente, mas querem estar perto para ver, já dizia um psicólogo. A enfermeira puxou as macas e, no desespero, clamou:
— Você aí, ajuda aqui!
João com rapidez estendeu os lençóis. Sob o olhar de muitas pessoas, ajudou a colocar os mortos nas macas e junto com outro rapaz levaram ao necrotério. Ao colocá-los nas macas, viu um corpo de mulher com o rosto desfigurado e um jovem com a cabeça amolgada, ambos irreconhecíveis. Quando voltou, a enfermeira já tinha se ocupado dos feridos e, já com os médicos, cuidavam deles.
Acidente na BR. O motorista embriagado, em alta velocidade, vinha à cidade deixar algumas pessoas, pois, precisava voltar e fazer uma segunda viagem, mas se chocou com outro veículo.
João passou a noite ao lado do sobrinho, que não apresentava escoriações, mas precisava viajar, observações médicas. Quando tudo se acalmou vieram avisá-lo no hospital, não haveria noivado, Sara estava passando mal e iam transferir a cerimônia para o domingo. O rapaz viu estranheza no recado, estava tudo preparado. “Talvez comovidos com o acidente do Caio, resolveram mudar a data do noivado”. Refletiu, cogitando ir vê-la quando deixasse o hospital.
O domingo do dia 19 de dezembro acordara cinzento e nunca mais mudou de cor. Pelo vidro da janela na sala de emergência observou o céu carregado de cinza. João ficou sabendo que o cinza ficaria para sempre em sua vida quando lhe contaram. A moça com o rosto desfigurado e irreconhecível que ele havia levado ao necrotério tinha nome. Era Sara Regina. Havia duas viagens. Um colega seu de trabalho se dispôs a trazer um grupo de pessoas e em seguida retornaria para buscar os outros. Ela estava na primeira viagem porque precisava se preparar para a festa do seu noivado.  
Dezoito de dezembro de mil novecentos e noventa e três. Às 18 horas. Morreram os planos. Morreu a espera, morreram os anseios, morreram os sonhos... Expirou o amor.  
Depois que tudo aconteceu, culparam o destino e o tempo que nele se desfez ao levar para sempre a moça. Seria mesmo o destino? João compreendera que não. De tudo, ficou o silêncio. O silêncio de um dia cinza que não amanheceu. O silêncio de um amor que se foi de repente e o silêncio de um jovem que busca em seus dias compreender o tempo de um amor que chega sem perceber, mas que morre aos dezoito anos. O tempo tem seu destino, a vida tem os seus planos e o destino o seu tempo, mas por mais que se viva da forma certa, a vida caminha o tempo todo, à margem da irresponsabilidade de alguém.