domingo, 1 de dezembro de 2013

18 ANOS


17 de Agosto, 1993.
O banco, uma enorme fila. O horário de almoço estreitava-se. Na demora, o cansaço, no estresse, a espera. E tinha ainda o sobrinho apressando a todo instante, pois precisava almoçar e tinha que esperá-lo. Mas tudo isso se findou num segundo quando um verde par de olhos encontrou os olhos do rapaz.
— O que posso fazer por você? Atrás de um balcão, ela disse ajuntando as mãos e com um sorriso daqueles que parece dizer: “adoro você”. – “Preciso que fique comigo” – pensou em dizer, inebriado com o carisma da moça, mas nada disse. Apenas abaixou os olhos e leu no seu crachá: SARA REGINA, ESTAGIÁRIA. Nome bonito e composto. O jeito era de quem passa por alguém e deixa um pedaço grudado para não ser esquecido. Sara Regina não passou, instalou-se em seus pensamentos. Ele entregou-lhe os documentos necessários para abrir uma conta.
— Espere um minuto. – Ela falou novamente usando o sorriso “adoro você”. Ele nada falou. Depois do tempo ali esperando, esperar um minuto perto da graciosa moça era melhor que todos os minutos vividos. Observou ela abrir gavetas, fechá-las, digitar com velocidade, fazer anotações. Vez em quando parava tudo. Demorava os olhos nele, lançava um “adoro você” em forma de um riso e voltava a fazer o seu serviço. A simpatia não era para ele, exclusiva. O seu encanto natural contagiava a todos. A antecedente senhora recebeu a mesma cordialidade. Encantada, se despediu e seguiu pelo corredor feliz com a atendente.
— Pronto moço. – falou devolvendo os papéis. – Daqui a três dias você pode vir retirar o seu cartão.
— Com quem devo falar?
— Comigo.
Cabelos longos, amarelos. Mãos finas e uma pequena rouquidão na fala. Detalhes que o rapaz guardou. Ela não tinha pressa de pronunciar as palavras. Quando alguém falava, esperava até que o silêncio indicasse o momento certo de dizer.
— Moço, a sua identidade. – disse saindo detrás do balcão ao alcance dele.
— Obrigado.
Olharam-se por alguns segundos...
— Me deixe voltar. – sorriu embaraçada – tenho muito trabalho...
— Ok, a gente se vê... Quinta-feira?!
— Ah, sim.
Mãos amigas se tocaram. O olhar também. Naquele dia perdera o almoço, mas ganhou uma razão. Sara Regina. Na quinta-feira iria sozinho, sem a ajuda do sobrinho, quem sabe ficaria um pouco mais à vontade ao redor daquele encanto?
A tarde que passava sem pressa não apaziguava os seus pensamentos, que velozes insistiam na imagem verde de um olhar e num sorriso que dizia “adoro você”. Por várias vezes tentou afastá-la dos seus pensamentos. Aquilo tinha jeito de sonho e ele não estava preparado para sonhar um sonho daquele. Cansado de brigar com os pensamentos, deixou que sonhasse o seu coração. “No final, a gente se prende mais aos sonhos que na realidade deles”. Refletiu. Toda emoção depois de um tempo deixa de existir, ou perde a força do primeiro encanto.
Quando o dia chegou ao final de uma quarta-feira sem pressa, ele lembrou que precisava comprar uma gravata, pois a que tinha não combinava com a roupa que usaria na formatura do seu sobrinho.

 19 de agosto de 1993.
Poucas pessoas havia no banco quando chegou a vez do rapaz. 
— Oi. – Falou ainda de pé. – Vim retirar o meu cartão. – sentou-se.
— Ah, sim. – Respondeu com aquele sorriso. – Está aqui. – Proferiu com brandura depois de retirá-lo do meio de alguns outros documentos.
— Tão rápido assim?
— Sabia que viria.
— Por quê?
— Sou nova aqui, mas de alguns rostos consigo lembrar, o seu, por exemplo, não esqueci. – Sorriu.
— Não sabia dessa minha qualidade.
— Qual?! – Indagou, mirando o rapaz com os olhos semicerrados.
— Um rosto inesquecível.
— Ah! – Sorriu abanando a mão. – É um jeito de dizer.
— Obrigado. Ah! Também não vou esquecer seu rosto.
Ela disparou uma risada.
— Bobo! – Falou mirando o rapaz, e sem mudar a direção dos olhos, anunciou: – Próximo!
Quando deixou o banco, despertou nele o desejo de voltar. Não disseram muitas palavras e, bem por isso, compreenderam a linguagem dos olhos. Ela se lembrou dele, isso já era um bom começo. Quando os corações se apreciam, os desejos recomendam os caminhos.
Depois que atendeu o último cliente e o banco já havia fechado, ela verificou a ficha do rapaz. — João?! – Riu. – Ele tem nome antigo! – Falou a si mesma. Os caminhos não eram distantes, nem as possibilidades, nem as certezas. Sorriu ao descobrir que moravam na mesma rua, continentes opostos.
Dezenove de setembro daquele ano. Somente quando ele foi cantar a última música é que percebeu, ela estava na igreja ouvindo a missa. Ele cantou com os olhos fechados e, para não errar, permaneceu com eles fechados. Poderia se desligar da música e errar o tempo. Será que depois de alguns dias ela ainda se lembrava dele? Indagou-se por dentro.
Ele enrolava os cabos quando a viu se despedindo na porta. Não correu, mas acelerou os passos de tal forma que parecia correr.
— Oi! – Disse estendendo a mão. – Lembra-se de mim?
— Sim. Do banco, né?
— Sim. – Pausa. – Não sabia que você frequentava essa igreja...
— Ah, eu frequento aquela no final dessa rua – disse apontando o lado. – A minha mãe frequenta aqui.
— Quem é a sua mãe?
— Aquela. – Apontou a dona Maria, a mulher que dirigia a missa. Ele sorriu.
— Você mora aqui por perto?
— Na mesma rua em que você mora, só que láááá... na ponta. – Fez um largo gesto para indicar a distância oposta.
— Como sabe a rua que eu moro?
— Pelos documentos do banco.
Sorriram.

Tudo muda. Precisamos estar atentos às mudanças e nos adaptar a elas. Ela não tinha sonhos diferentes. Toda mulher sonha com um grande amor, pensa em se casar um dia e cogita ter filhos. Prestes a completar dezoito anos, nunca namorara. Dizia que namoraria para casar e só depois dos dezoito. Um dia depois do seu aniversário, mas só depois dos dezoito, brincava. Vivia em paz com os seus sentimentos. Driblando os interesses dos rapazes, sentia-se segura.
17 de outubro, 1993.
João não esperava encontrá-la na festa. Como ela, foram convidados pelo anfitrião, mas não conheciam ninguém. Naquela noite ele conheceu Selma, irmã de Sara, que se embrenhou no meio dos convidados esquecendo-se dela. Sozinhos, afastaram-se para conversar à distância em que podiam ser vistos. A luz que emanava da janela iluminava o banco onde estavam e a música não cobria o som da conversa. Sentados a distância que cabia alguém entre eles, se conheceram.
O coração costuma seguir por caminhos que os pés não imaginaram caminhar. Ela percebeu isso quando ele pousou a sua mão sobre a dela. Ele entendeu quando ela disse não querer namorar, mas mesmo assim insistiu. Quem sabe mudaria de ideia? Aceitou. Mas beijos, só depois dos dezoito. Ele concordou. Sabia que faltava um mês, e que se não aceitasse as regras, poderia perder a oportunidade de ficar perto dela. Ainda bem que o tempo vai moldando o coração e a gente vai anotando o que é lindo. Tinha aprendido com os erros dos outros. Mas, como mostrar aos outros que estavam namorando? O namoro precisava de proteção. Ela entendeu e, como estava apaixonada, quando saíam, se davam as mãos. Não são as circunstancias que mudam um coração, mas a forma de conviver com elas.
Na manhã do dia 3 de dezembro não houve sol. À tarde, uma garoa fina perseverou por algumas horas, intercalada por acanhados jorros de sol. Ele foi buscá-la no serviço a fim de atrasá-la um pouco para que recebesse uma surpresa. Ela mostrou a ele alguns presentes que ganhara dos colegas de serviço. Deu ênfase ao mostrar o livro “Feliz Ano Velho”, de Marcelo Rubens Paiva, que ela tinha curiosidade em ler e que ganhara do gerente do banco.
Em cima do bolo não havia velas, as velas estavam apagadas ao lado. Depois que os amigos cantaram, ela acendeu-as. Quando acenderam, as chamas propagaram formando o número 18. Nas festas de aniversário costumam-se apagar as velas, mas não seria melhor acendê-las? Afinal, precisamos da luz para clarear a vida e o discernimento, para recebermos os dias que vêm e que não sabemos como serão.
Depois que os amigos foram embora eles sentaram no banco frente à casa dela. Ele tirou do bolso um pequenino embrulho e entregou a ela. O presente, uma corrente com um pingente em forma de um coração. Ela sorriu e por alguns segundos observou o pequeno coração de ouro.   
— Obrigado pela surpresa.
— Não fui eu que preparei, foram a sua irmã e a sua mãe.
Ela observou novamente a corrente, deu um sorriso e pediu que ele a colocasse em seu pescoço.
— Estava pensando comprar uma exatamente assim. Você me deu o seu coração. – sorriu. Estava feliz e, por se sentir assim, queria tantas coisas, mas escolheu aquele momento para ser único em sua vida. É difícil pensar nas palavras quando o amor chega. Os gestos falam por tantas coisas.
— Posso fazer uma pergunta?
— Sim.
— Na verdade é um pedido.
— Tudo bem.
— Quer namorar comigo? – Ela riu.
— Você já me fez esse pedido e eu aceitei, lembra?
Ele sorriu. Sabendo que tinha mantido o protocolo. As certezas se uniram aos sonhos dela. Aconteceu o primeiro beijo. Não fora um dia depois como dizia. Os desejos têm pressa. Os dois corações estavam ali acentuando a urgência deles. Seus planos se realizavam. Ele era lindo, rapaz de respeito e, como ela, se preocupava com o futuro.
— Se você fez o pedido, qual é a pergunta?!
— Por tudo que conversamos, eu cheguei à conclusão de que preciso... – Procurou as palavras – De alguém como você o tempo todo ao meu lado.
— Sei.
Seus olhos procuraram os dele. Os segundos seguidos encontraram o silêncio. Com um movimento de cabeça ela fez um “e daí” como gesto.
— Quer se casar comigo?
Avermelhou-se. Acanhada, segurou as mãos trêmulas do rapaz. Ela queria casar-se no mês de maio, porque dizem ser o mês das noivas. Tudo estava indo rápido demais. Quando o amor chega, traz junto incertezas, que duram um tempo incerto.
Quatro dias depois. Oito de dezembro.
— A formatura é no dia dezessete de dezembro. – Caio falou ao seu tio com um calendário nas mãos. – É numa sexta feira e, no sábado à tarde, marcamos um jogo de futebol no ginásio, vamos?
— Não vou poder, tenho um ensaio na igreja.
— Não pode faltar?
— Não.
— Que pena, ia ser legal. E a Sara, vai ao ensaio também?
— No sábado, eles vão se reunir numa chácara. Revelação do amigo secreto com o pessoal do banco. Vamos nos ver à noite na casa dela.
— Ah, será o dia do seu noivado, já estava esquecendo.
— Sim e, não vai dizer que desencalhei com apenas vinte e dois anos.
— Eu não tô dizendo nada...
A ansiedade caminhava nele sem deixá-lo ver o horizonte. No final do dia, o sol estava cercado por nuvens escuras. A luz no meio, separava as camadas e era como tela de cinema, mas ele nada via. Queria olhar e estava se olhando por dentro. A felicidade o trouxera até ali e tinha data marcada, Sábado, 18 de Dezembro, 1993. Iam ficar noivos, em maio se casariam.
João acabara de chegar do ensaio quando o telefone tocou. Do hospital, o seu cunhado avisara, Caio havia batido a cabeça ao cair. Carecia que ele ficasse com o sobrinho por algumas horas, pois, precisava mover alguns documentos para levá-lo para fora da cidade.
A noite chegara e, na sala de emergência, acompanhava o sobrinho que, dormindo, aguardava as observações médicas. Preocupava-se com o sobrinho, mas não tirava da cabeça que logo mais à noite ficaria noivo. Por volta das 18 horas alguém entrou gritando no corredor.
— Emergência! Cadê a emergência? – O homem não continha o desespero.
— O que foi, moço? – Falou a única enfermeira por ali naquele momento.
— Tem duas pessoas mortas ali e dois feridos! – Disse apontando para o carro às suas costas. – Ficou um pra trás, preso nas ferragens, já sem vida.
Seres humanos são estranhos, ninguém quer sofrer um acidente, mas querem estar perto para ver, já dizia um psicólogo. A enfermeira puxou as macas e, no desespero, clamou:
— Você aí, ajuda aqui!
João com rapidez estendeu os lençóis. Sob o olhar de muitas pessoas, ajudou a colocar os mortos nas macas e junto com outro rapaz levaram ao necrotério. Ao colocá-los nas macas, viu um corpo de mulher com o rosto desfigurado e um jovem com a cabeça amolgada, ambos irreconhecíveis. Quando voltou, a enfermeira já tinha se ocupado dos feridos e, já com os médicos, cuidavam deles.
Acidente na BR. O motorista embriagado, em alta velocidade, vinha à cidade deixar algumas pessoas, pois, precisava voltar e fazer uma segunda viagem, mas se chocou com outro veículo.
João passou a noite ao lado do sobrinho, que não apresentava escoriações, mas precisava viajar, observações médicas. Quando tudo se acalmou vieram avisá-lo no hospital, não haveria noivado, Sara estava passando mal e iam transferir a cerimônia para o domingo. O rapaz viu estranheza no recado, estava tudo preparado. “Talvez comovidos com o acidente do Caio, resolveram mudar a data do noivado”. Refletiu, cogitando ir vê-la quando deixasse o hospital.
O domingo do dia 19 de dezembro acordara cinzento e nunca mais mudou de cor. Pelo vidro da janela na sala de emergência observou o céu carregado de cinza. João ficou sabendo que o cinza ficaria para sempre em sua vida quando lhe contaram. A moça com o rosto desfigurado e irreconhecível que ele havia levado ao necrotério tinha nome. Era Sara Regina. Havia duas viagens. Um colega seu de trabalho se dispôs a trazer um grupo de pessoas e em seguida retornaria para buscar os outros. Ela estava na primeira viagem porque precisava se preparar para a festa do seu noivado.  
Dezoito de dezembro de mil novecentos e noventa e três. Às 18 horas. Morreram os planos. Morreu a espera, morreram os anseios, morreram os sonhos... Expirou o amor.  
Depois que tudo aconteceu, culparam o destino e o tempo que nele se desfez ao levar para sempre a moça. Seria mesmo o destino? João compreendera que não. De tudo, ficou o silêncio. O silêncio de um dia cinza que não amanheceu. O silêncio de um amor que se foi de repente e o silêncio de um jovem que busca em seus dias compreender o tempo de um amor que chega sem perceber, mas que morre aos dezoito anos. O tempo tem seu destino, a vida tem os seus planos e o destino o seu tempo, mas por mais que se viva da forma certa, a vida caminha o tempo todo, à margem da irresponsabilidade de alguém.

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