quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

O OUTRO LADO DAS PESSOAS (História para aquecer o coração 2)

               
                                                         
 Minha avó tinha uma inimiga chamada senhora Wilcox. Elas se mudaram, recém casadas, para casas vizinhas, numa pequena cidade onde tinham ido viver. Não sei quem começou a guerra – foi muito antes de eu nascer – e não sei se quando eu nasci, uns trinta anos depois, elas mesmas se lembravam de quem começara. Mas o duro embate continuava, com amargas batalhas.
Era uma contenda travada sem um pingo de educação. Era uma guerra entre senhoras, o que significa guerra total. Nada na cidade escapou das conseqüências. A igreja de trezentos anos, que sobrevivera à Guerra Civil, quase foi ao chão quando vovó e a senhora travaram a batalha pela presidência da Liga das Senhoras. Vovó ganhou este combate, mas foi uma vitória sem valor, pois a senhora Wilcox, derrotada, demitiu-se da Liga num acesso de raiva. E qual é a graça de dirigir alguma coisa se você não pode humilhar sua inimiga mortal?

A senhora Wilcox venceu a batalha da Biblioteca Pública, conseguindo que a sobrinha Gertrude fosse indicada como bibliotecária no lugar de minha tia Phyllis. No dia em que Gertrude assumiu o posto, vovó parou de apanhar livros na biblioteca – dizendo que estavam “cheios de germes” – e começou a comprar os livros que queria ler.

        A batalha da escola secundária terminou empatada. O diretor conseguiu um emprego melhor e saiu antes que a senhora Wilcox o tirasse de lá ou vovó conseguisse mantê-lo lá para sempre.

Além dessas batalhas mais sérias, aconteciam constantes ataques e recuos na linha de tiro. Quando éramos crianças e visitávamos vovó, parte da diversão consistia em fazer caretas para os terríveis netos da senhora Wilcox – que revidavam com igual virulência – e roubar uvas do lado da cerca dos Wilcox. Corríamos atrás das galinhas e púnhamos bombinhas nos trilhos do bonde bem em frente à casa dos Wilcox com a doce esperança de que, ao passar, o bonde provocasse uma explosão que fizesse a senhora Wilcox morrer de susto.
Num dia histórico, pusemos uma cobra na calha de chuva dos Wilcox. Minha avó ainda ensaiou um protesto, mas sentimos sua solidariedade implícita, bem diferente dos veementes “nãos” de mamãe, e prosseguimos na nossa carreira de crianças endiabradas.

          Não pensem nem por um minuto que só havia um lado nessa guerra. Lembrem-se de que a senhora Wilcox também tinha netos bem mais valentões e espertos do que os netos de vovó. Os pestinhas puseram gambás no porão de sua casa e esta foi a agressão mais suave. O fato é que qualquer incidente na casa de vovó sempre foi atribuído aos Wilcox.

Não sei como vovó poderia ter suportado todos esses problemas se não fosse pelo caderno feminino do jornal diário de Boston.

          A página era uma instituição maravilhosa. Além das usuais dicas de cozinha e conselhos sobre limpeza, havia uma seção de troca de cartas para que as leitoras pudessem desabafar seus problemas. Para que o anonimato fosse mantido, as cartas vinham assinadas com um pseudônimo. O de vovó era Arbusto. Outras leitoras que tivessem o mesmo problema respondiam, dando a solução encontrada e também usando seus pseudônimos, como Aquela que Sabe, X ou qualquer outro. Muitas vezes, exposto o problema, as leitoras ficavam trocando cartas por anos através do jornal, falando sobre filhos, doces em conserva ou a mobília nova da sala de jantar.
            Foi isso que aconteceu com a vovó. Ela e uma mulher chamada Gaivota se corresponderam por vinte e cinco anos, e vovó dizia a Gaivota coisas que jamais confessara a ninguém – como a vez em que contou que pensava estar grávida (e não estava) ou quando meu tio Steve pegou piolho na escola e vovó ficou profundamente humilhada. Gaivota era sua amiga do coração.

Quando eu tinha dezesseis anos, a senhora Wilcox morreu. Numa cidade pequena, mesmo que você deteste a vizinha, faz parte das regras se oferecer para ajudar a família de luto, no que for necessário.
Vovó atravessou o gramado, deu os pêsames às filhas da senhora Wilcox e começou a ajudá-las a limpar a já imaculada sala de visitas para o funeral. De repente, viu aberto sobre uma mesa, num lugar de destaque, um enorme álbum de recortes. Para seu mais absoluto estarrecimento ali estavam coladas, em colunas paralelas, as cartas dela para Gaivota e as de Gaivota para ela. A maior inimiga de vovó fora, na verdade, sua melhor amiga.
Foi a única vez que me lembro de ter visto minha avó chorar. Eu não sabia naquela época por que ela estava chorando, mas agora eu sei. Chorava por todos os anos perdidos que não poderiam ser recuperados. Naquele momento, fiquei tão impressionada com as lágrimas de minha avó, que não me dei conta da descoberta fundamental que eu começava a fazer. Uma descoberta que se transformou em convicção e que tem me ajudado imensamente a viver:
As pessoas podem parecer insuportáveis. Podem parecer egoístas, mesquinhas e hipócritas. Mas, se não procurarmos olhá-las sob outra perspectiva, nunca seremos capazes de descobrir que são também generosas, amorosas e bondosas. E, se não lhes dermos a oportunidade de revelarem seus aspectos positivos, ficaremos para sempre privados do bem que eles podem nos proporcionar.


Louise Dickinson Rich