segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O GRANDE MISTÉRIO - SERGIO PORTO



SERGIO PORTO, conhecido também como STANISLAW PONTE PRETA, nasceu no dia 11/01/1923 em Copacabana Rio de Janeiro e faleceu no dia 29/09/1968. Autor de textos carregados de humor e com uma boa dose de ironia, o escritor, cronista, compositor, jornalista e radialista, deixou sua marca na literatura brasileira. No ano da minha 4ª série, no livro didático de língua portuguesa encontrei uma das suas criações, a crônica A VELHINHA CONTRABANDISTA, anos mais tarde voltei a desfrutar dos belos textos desse autor e estou postando aqui outro texto maravilhoso, não deixe de ler. Ah, quer dizer, não deixe de rir.


O GRANDE MISTÉRIO

             Há dias já que buscavam uma explicação para os odores esquisitos que vinham da sala de visitas. Primeiro houve um erro de interpretação: o quase imperceptível cheiro foi tomado como sendo de camarão. No dia em que as pessoas da casa notaram que a sala fedia, havia um soufflé de camarão para o jantar. Daí...
             Mas comeu-se o camarão, que inclusive foi elogiado pelas visitas, jogaram as sobras na lata do lixo e — coisa estranha — no dia seguinte a sala cheirava pior.
            Talvez alguém não gostasse de camarão e, por cerimônia, embora isso não se use, jogasse a sua porção debaixo da mesa. Ventilada a hipótese, os empregados espiaram e encontraram apenas um pedaço de pão e uma boneca de perna quebrada, que Giselinha esquecera ali. E como ambos os achados eram inodoros, o mistério persistiu.
             Os patrões chamaram a arrumadeira às falas. Que era um absurdo, que não podia continuar, que isso, que aquilo. Tachada de desleixada, a arrumadeira caprichou na limpeza. Varreu tudo, espanou, esfregou e... nada. Vinte e quatro horas depois, a coisa continuava. Se modificação houvera, fora para um cheiro mais ativo.
            À noite, quando o dono da casa chegou, passou uma espinafração geral e, vitima da leitura dos jornais, que folheara no lotação, chegou até a citar a Constituição na defesa de seus interesses.
            — Se eu pago empregadas para lavar, passar, limpar, cozinhar, arrumar e ama-secar, tenho o direito de exigir alguma coisa. Não pretendo que a sala de visitas seja um jasmineiro, mas feder também não. Ou sai o cheiro ou saem os empregados.
           Reunida na cozinha, a criadagem confabulava. Os debates eram apaixonados, mas num ponto todos concordavam: ninguém tinha culpa. A sala estava um brinco; dava até gosto ver. Mas ver, somente, porque o cheiro era de morte.
           Então alguém propôs encerar. Quem sabe uma passada de cera no assoalho não iria melhorar a situação?
           -- Isso mesmo — aprovou a maioria, satisfeita por ter encontrado uma fórmula capaz de combater o mal que ameaçava seu salário.
          Pela manhã, ainda ninguém se levantara, e já a copeira e o chofer enceravam sofregamente, a quatro mãos. Quando os patrões desceram para o café, o assoalho brilhava. O cheiro da cera predominava, mas o misterioso odor, que há dias intrigava a todos, persistia, a uma respirada mais forte.
          Apenas uma questão de tempo. Com o passar das horas, o cheiro da cera — como era normal — diminuía, enquanto o outro, o misterioso — estranhamente, aumentava. Pouco a pouco reinaria novamente, para desespero geral de empregados e empregadores.
         A patroa, enfim, contrariando os seus hábitos, tomou uma atitude: desceu do alto do seu grã-finismo com as armas de que dispunha, e com tal espírito de sacrifício que resolveu gastar os seus perfumes. Quando ela anunciou que derramaria perfume francês no tapete, a arrumadeira comentou com a copeira:
         — Madame apelou para a ignorância.
         E salpicada que foi, a sala recendeu. A sorte estava lançada. Madame esbanjou suas essências com uma altivez digna de uma rainha a caminho do cadafalso. Seria o prestigio e a experiência de Carven, Patou, Fath, Schiaparelli, Balenciaga, Piguet e outros menores, contra a ignóbil catinga.
         Na hora do jantar a alegria era geral. Nas restavam dúvidas de que o cheiro enjoativo daquele coquetel de perfumes era impróprio para uma sala de visitas, mas ninguém poderia deixar de concordar que aquele era preferível ao outro, finalmente vencido. 
         Mas eis que o patrão, a horas mortas, acordou com sede. Levantou-se cauteloso, para não acordar ninguém, e desceu as escadas, rumo à geladeira. Ia ainda a meio caminho quando sentiu que o exército de perfumistas franceses fora derrotado. O barulho que fez daria para acordar um quarteirão,quanto mais os da casa, os pobres moradores daquela casa, despertados violentamente , e que não precisavam perguntar nada para perceberem o que se passava. Bastou respirar. 
        Hoje pela manhã, finalmente, após buscas desesperadas, uma das empregadas localizou o cheiro. Estava dentro de uma jarra, uma bela jarra, orgulho da família, pois tratava-se de peça raríssima, da dinastia Ming.
         Apertada pelo interrogatório paterno Giselinha confessou-se culpada e, na inocência dos seus 3 anos, prometeu não fazer mais.
         Não fazer mais na jarra, é lógico.

(Stanislaw Ponte Preta)


sábado, 2 de janeiro de 2016

IDENTIDADES


As luzes se acenderam de repente ofuscando os olhos do rapaz. Após a vidraça, havia um corredor, alguns centímetros acima da janela, um relógio o colocava num diálogo com o tempo. Lucas esfregou os olhos cheios de luz, deixou que as suas vistas percorressem o corredor. Além dos vidros, paredes brancas, sobre o corredor, bancos vazios. Quando alguém despontava em direção ao seu quarto, desviavam-se para a direita. Cada rosto visto deixava no moço a esperança de que alguém pudesse abrir a porta, entrar, sentar-se ao seu lado. Após acender as luzes, a enfermeira recolheu uma bandeja de curativos, checou os ferimentos do rapaz, apagou as luzes, se foi. Sentado em seu leito, Lucas observou-a caminhando até ela desaparecer no fim do corredor.
         “Talvez seja mais simples esperar devagar, o tempo já corre tanto”. Pensou o jovem, observando o relógio no alto.
         Agulha no braço, exames para fazer, médicos atentos, o silêncio do hospital. O relógio aumentava a sua ansiedade. O corredor acrescentava o vazio, mas as janelas abriam-lhe o mundo. Podia ver o corredor, nele, as possibilidades da vida. Os comprimidos começaram a fazer efeito, alguns minutos após a enfermeira deixar o quarto. O sono lhe pesava os pensamentos. Adormeceu.         
         O corpo imóvel numa máquina, o rapaz percebeu antes mesmo de abrir os olhos. Um jovem da sua idade o examinava. O olhar atento, os gestos leves, a fala mansa, anotado no seu crachá: Lucas Barcellos. A máquina foi engolindo o paciente lentamente para um exame de tomografia. Curiosamente estava internado no Hospital São Lucas. As coincidências tomaram conta do jovem paciente, isso lhe alegrou o instante. A máquina devolveu o rapaz após engoli-lo por cinco minutos. Na parede a sua frente um relógio. O som era de dois em dois, o ponteiro saltava no tempo segundo.
O jovem médico ajeitou suavemente a cabeça do seu paciente. Encaixou a copla do aparelho de maneira que não lhe apertasse o crânio, checou um computador, antes de apertar uma tecla, abriu a copla. Ajeitou novamente o paciente, erguendo milimetricamente no aparelho a cabeça do moço. Olhou o relógio no alto, em seguida apertou uma tecla. A máquina voltou a engolir o seu paciente. O moço sentia o ruído do aparelho estalando, acoplado em sua cabeça. Após cinco minutos, quando o medo já rondava roubando-lhe a respiração, a máquina o trouxe para fora. “Prontinho Sr. Lucas”! – exclamou o jovem médico. – “Vejo que está tudo bem, mas os relatórios ficarão prontos após três dias”. Apertou um botão, alguns minutos depois um enfermeiro veio buscá-lo.
O relógio. A janela, o corredor. No quarto em que se encontrava agora, não tinha nada disso. A janela do seu novo quarto dava para um espaço vazio. Podia ver a grama bem aparada, as janelas do outro pavilhão. Uma enfermeira desfez as cortinas, checou a mangueira de soro, em seguida o médico veio examinar. O jovem observou o médico: ele tinha olhos cansados, voz rouca, cabelos desgrenhados, brancos, comparados a lã. Em suas mãos, muitos papéis. No bolso do jaleco, do lado direito, uma insígnia prateada revelava o número do CRM, o nome do velho médico: Dr. Lucas Cellero.  Após apoiar o estetoscópio no moço em vários pontos do tórax, assinou alguns papéis. Com leitura minuciosa, após ler o último exame, ergueu as vistas, observou o calendário fixado na parede. Pelo movimento, o paciente notou que ali havia um calendário. Durante o tempo que ficou ali, o jovem observou o calendário, passou a contar os seus dias.
De volta ao seu primeiro quarto, observou os funcionários do hospital: as pessoas que se iam, olhadas pelas costas, algumas tinham lombos largos, ombros levantados, caminhavam com passos firmes, de cabeças erguidas. Alguns dos que andavam em sua direção, mas não entravam por sua porta, eram contrários aos que iam: tinham ombros caídos, rostos sisudos e passos de quem não quer chegar. O tempo morria devagar, o calendário apontava isso. Lucas, o paciente, notou isso enquanto ficara naquele quarto, viu o sol sorrindo, brincando com a grama. Por vez, desejou ser menino, ir lá pisar naquela grama. “Duas coisas provocam em nós a vontade de tirar os sapatos, pisar descalço: um chão bem limpo e uma grama bem aparada”. Refletiu. “Isso não é mais possível quando a gente cresce. Somos um calendário, no qual guardamos o tempo, marcamos nossos barulhos e silêncios”. Ponderou o jovem acamado.
No lençol azul estava escrito, na cor verde, Hospital São Lucas. Quis o rapaz entender qual a razão da maioria dos hospitais terem nomes de santos. Seria uma proteção aos que nasciam, ou um encaminhamento para o céu por meio do santo escolhido? O rapaz percebeu: estava em um hospital particular. Sozinho num quarto. Do lado de fora, a ausência de pessoas. Os médicos também eram mais pacientes, as enfermeiras ouviam até o final da frase, sem interromper. A sua mente clareou quando os medicamentos tomaram posse do seu corpo. Lucas recobrou a memória. Lembrando aos poucos do acidente que o levou ali. Pensou na repetição dos homens com nomes iguais. Enquanto andava com seu Skate, fora atropelado na rua da sua casa por Lucas Benitez, quase foi a óbito devido a gravidade do acidente. Indo parar ali no hospital São Lucas, fora atendido por Lucas Barcellos, o técnico de Raio-X. Sobre os cuidados médicos do Dr. Lucas Cellero, ficou internado por vários dias. Por temer a morte que ameaçava mostrar-lhe o além, o paciente Lucas leu o Evangelho de Lucas, com medo de queimar no inferno por toda a eternidade.