Quando
abri a porta estava lá o Leandro com uma bola novinha nas mãos. Atrás dele, os
amigos, com um sorriso dizendo: vamos?! A minha reação foi em voz alta:
Ouuutraa?! Todos riram. Em uníssono
ouvi: e novinhaaa! Completava dezenove dias que a bola anterior, que era minha,
fora destruída pela dona Elmira.
Todos
da turma perderam uma bola no quintal da vizinha. O Leandro perdera algumas. Às
vezes não era a bola caída no quintal, eram os gritos de gols que incomodavam
aquela jovem senhora. Muitas vezes ela vinha até a rua e, quando menos
esperávamos, a nossa bola se ia. Os goleiros tinham de cuidar para não tomar
gols e ainda espreitar a brava vizinha. O nosso problema
era mais técnico: não era permitido dar chutões. Caso isso acontecesse, quem
deu o chutão, ficaria de fora por cinco minutos, prejudicando a sua equipe. A
regra era aceita para que evitássemos mandar a bola no quintal da malvada.
A
rua estava suja. O mato sobressaía, impossibilitando a bola de rolar
tranquilamente. Foi quando o Jair teve a ideia de limpar a rua. Deixamos a bola
de lado e partimos para a limpeza, tirando também os entulhos da frente da casa
da vizinha.
A
rua ficou limpa. A partida começou. Nunca fizemos tantos gols e gritamos tanto.
Deu empate, 19x19, com dois gols inválidos para cada lado. Terminamos o jogo,
com a bola. Na tarde seguinte, a bola já não era mais nova, mas a nossa alegria
sim. Foi numa dividida entre o Jair e o Leandro. A bola escapuliu. O Mauro
vinha correndo para receber o passe, a bola bateu nele e foi repousar no
quintal proibido.
Sabendo
da impossível continuação do jogo, nos restou sentar e ver aquela senhora com
uma faca destruindo a nossa alegria. Aguardamos. Silenciosos, atentos. Dizem
que a gente se acostuma com a dor, mas nunca nos acostumamos com as bolas
destruídas. Durante dez minutos, ali, esperando, nada aconteceu. Acho que a
nossa tristeza não está em casa. Falou o Edinho quebrando o silêncio. Sorrimos.
Ele tinha razão, mas quem iria lá buscar a bola? Ninguém tinha coragem de ser
novamente enxotado, tendo que, além de correr, se desviar das pedras do
estilingue da senhora.
Dona
Elmira era uma mulher de trinta e cinco anos, sem riso, alta, braços fortes,
cabelos amarelos presos com um lenço. Usava sempre vestidos longos. Vivia
trancada dentro de casa. Perdeu o marido e o filho num acidente de trator
quando moravam numa fazenda. Após um longo tempo se escondeu ainda mais dentro
de casa e só saía de lá para mirar seu estilingue ou acabar com o nosso jogo.
Não recebia visitas, nem visitava ninguém.
Após
um período de espera, caminhei lentamente. Fixei as mãos sobre a grade.
Observei. Com olhos atentos vasculhei o quintal. Olhei para o pessoal que não
se movia atrás de mim. Fizeram sinais com a cabeça para que eu pulasse. O que
fiz com destreza. Aguardei um instante agachado, buscando ver de qual lado da
casa ela iria surgir. Nada. O silêncio. A ausência dela estranhava. Pensei no
que o Edinho disse: a nossa tristeza estava viajando. Encontrei a bola em baixo
de um canteiro suspenso. Peguei e voltei correndo. Antes de chegar à grade,
joguei a bola e saltei.
O
jogo continuou, mas não estava agradável. Parecia nos faltar algo. Paramos a
partida. Como se esperássemos pela dona Elmira, olhamos na direção da casa. O
Leandro levantou e caminhou em direção ao quintal com a bola na mão. Enfiou a
cara por entre as grades e observou a casa. Repeti os mesmos movimentos. Alguns
minutos depois estávamos ali, todos, com as caras na grade, olhando,
vasculhando o quintal e observando a janela, pela qual ela abria só para atirar
em nós algumas pedras de barro. Com a destreza de sempre, saltei dentro do
quintal e fui bater na janela. A curiosidade de olhar dentro da casa era maior
que o medo de estar na mira da senhora vizinha. Bati na porta. Gritei. Bati na
janela sem medo de estourar os vidros. Escutei um “me ajuda”. Gritei novamente
e a voz ecoou em maior altura: “me ajuda, pelo amor de Deus”! Gritei meus
amigos e pela porta dos fundos entramos na casa.
Dona
Elmira estava caída, com uma das mãos apertando um pano dobrado na cabeça. Uma
escada por cima e um pé preso em um dos degraus. Nunca soubemos quanto tempo
ela ficara ali esperando por socorro. Chamamos os Bombeiros. Os paramédicos
chegaram. Ela tinha uma costela quebrada e a cabeça suja de sangue seco.
Durante
dias jogamos bola na rua e cuidamos da dona Elmira. Entrávamos na casa antes
dos jogos e depois dos jogos. Ela dizia o que precisava e a gente
providenciava. Isso durou até que ela se recuperasse por completa.
Chegou um tempo em que não tínhamos condições
de comprar bolas. Para que não incomodássemos a vizinha com o nosso futebol, os
nossos pais não nos davam dinheiro. Ajuntamos alguns sacos plásticos, enrolamos
fitas adesivas até que se tornasse uma bola.
Após uma semana jogando com a bola de fitas, a dona Elmira surgiu pelo
lado de sempre. Pegamos a bola e nos recolhemos num canto da rua. Ela se
aproximou sem riso. O olhar fixo em nós. Usando bermudas e calçando tênis. Nas
costas, a bolsa das pedras, mas sem o estilingue nas mãos. Aproximou. Ficou parada
por alguns instantes buscando olhar o nosso olhar. Não cabiam palavras em
nossas bocas, o medo levara todas as letras. Ela tirou das costas a mochila das
pedras e disse: quero lhes dar algo, mas com uma condição. Assentimos com a
cabeça. Ela tirou uma bola nova,
novinha. Colocou-a no chão. Atirou para longe a mochila das pedras. Colocou um
pé sobre a bola. E com meio riso, apontou a bola e disse: querem saber qual a
condição de vocês ganharem essa? Vou jogar com vocês.
☺
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