Rubem Fonseca
É um contista, romancista, ensaísta e
roteirista brasileiro.
Fonte: Livro O romance morreu. Companhia das Letras, 2007, (pg. 157).
Hoje publico
aqui O QUINTO SUSPEITO, uma das
crônicas mais linda do Rubem Fonseca.
Costumo usar, alternadamente, dois
relógios de pulso. O que prefiro, por motivos sentimentais, mostra apenas o dia
do mês. O outro, além do dia do mês, tem o dia da semana. Desde criança nunca
lembro, sem fazer algum esforço mnemônico, qual é o dia do mês. Nos últimos
anos, trabalhando apenas em casa, também não consigo recordar, sem mobilizar
minha memória, o dia da semana.
Rotineiramente,
depois de usar algum tempo o relógio que mostra apenas o dia do mês, cansado de
ficar verificando nos meios disponíveis qual o dia que está transcorrendo – é
sábado ou domingo? –, volto a usar o relógio que informa também o dia da
semana.
Ponho
sempre o relógio que não estou usando sobre uma mesinha da sala. Segunda-feira,
depois de usar um dos relógios por vários dias, fui trocá-lo pelo que mostra,
além do dia do mês, o dia da semana, mas ele não estava na mesinha. Eu tinha
certeza absoluta de que o vira naquele local. Alguém tinha tirado o relógio
dali. A moça que trabalha na minha casa, ao ser indagada, disse que não havia
mexido no relógio. Assim como os meus filhos, que constantemente me visitam,
ela está acima de qualquer suspeita. Mas eu tinha quatro suspeitos, pessoas que
haviam estado naquela sala nos últimos dias.
O
primeiro suspeito: o técnico que veio consertar as cortinas. Ele possuía uma
cara patibular, de alguém que está tramando um crime ou sofrendo de um
tormentoso remorso. Só que, desde Lombroso (1835-1909), está totalmente desmoralizada
a tentativa de descobrir alguma predisposição à delinquência analisando as
características físicas do indivíduo. Não existem caras honestas se contrapondo
a caras desonestas. Existem, apenas, convencionalmente, caras feias e caras
bonitas. Mas podia ser ele.
O
segundo suspeito: o eletricista. Seu olhar era esquivo, como o de um bicho em
situação de perigo. Olhava de esguelha, fingindo que não estava observando
coisas e pessoas à sua volta. Quando eu me aproximava, ele parava de trabalhar
e ficava contraído, como se fosse dar um bote ou fugir. Eu tinha de reconhecer,
porém, que se ele não agisse com cautela corria o risco de levar um choque elétrico.
Mas podia ser ele.
O
terceiro suspeito: o relojoeiro que veio consertar o relógio da parede, uma
velha peça mecânica em forma de oito que fica sobre a mesinha onde estava o relógio
de pulso. Era um homem gordo, de aspecto bonachão. Costumamos achar todos os
gordos felizes, confiáveis o bondosos. – ao contrário dos magros, que desde
Shakespeare são vistos como famintos e perigosos. Mas esse é mais um embuste da
falsa ciência conhecida como fisiognomonia. (Quem estiver interessado nessa “arte
de conhecer o homem segundo as feições do rosto.”– e parece que muita gente ainda
acredita nessa falácia do século XVIII –, que leia Arte de estudar a fisionomia, de J.K. Lavater. É um livro
interessante.) O relojoeiro era gordo e bonachão, mas parecia ser ele.
O
quarto suspeito: o rapaz da farmácia, que, para entregar-me uma encomenda no
local da casa onde eu estava trabalhando, passou pela mesinha em que estava o
relógio. Ele ficava olhando em volta, alerta, astuto, como um desses
assaltantes de rua. Nem a paisagem que se via da janela escapou do seu olhar
curioso. Podia ser ele.
Eu
tinha uma lista de quatro pessoas com oportunidade de cometer aquele crime. A questão
era descobrir o delinquente. Então me lembrei das aulas de Direito penal, na
faculdade de Direito, das nossas discussões de que não havia delinquentes, mas
indivíduos anti-sociais, nem crimes, mas fatos indicativos da
anti-sociabilidade do autor. E lembrei-me também do brocardo (estou citando de
memória): “O testemunho é a prostituta das provas”, testemunho incluindo as
declarações da vítima e a confissão de autoria.
Para
provar essa teoria de que a prova testemunhal não é fidedigna, foram feitas
muitas pesquisas curiosas. Estas duas, entre várias, são clássicas:
Uma
mulher vestida de vermelho, com braço numa tipóia, atravessa uma sala onde
estão várias pessoas e desaparece. Mais tarde os pesquisadores perguntam aos
presentes se viram uma mulher passar pela sala e como ela estava vestida. Conforme
as respostas – alguns nem sequer a viram –,
ela estava de preto, cinza, bege e uma pessoa disse que a viu passar um
homem vestido de vermelho. O braço na tipóia passou totalmente despercebido.
Um
professor de Direito e dois alunos criam este ato dramático: os dois alunos, no
meio da aula, de acordo com rigorosa marcação teatral, começam uma violenta
discussão e um deles, de acordo com o script,
saca um revólver e atira no outro, que também está armado e revida atirando por
sua vez. Os dois caem ao chão feridos e pretensamente são transportados para um
hospital. O professor pede que os alunos permaneçam na sala para que a polícia
tome conhecimento exato do que aconteceu. Os alunos são ouvido em separado. Nenhum
depoimento coincide. A iniciativa da agressão ora é atribuída a um, ora outro;
as palavras ensaiadas que os brigões trocaram na discussão são reproduzidas de
maneira diferente e muitas são inventadas pelos depoentes.
Ou
seja: o testemunho é mesmo a prostituta das provas. Caberia aqui uma discussão
filosófica sobre os motivos pelos quais o mesmo objeto ou situação é percebido
de maneira diferente por pessoas diferentes, mas ficaria muito longo. A questão
é que, depois de pensar isso tudo, concluí que até então eu havia deixado de
lado um quinto suspeito.
O
quinto suspeito era eu. O meu testemunho, a minha certeza absoluta de que havia
visto o relógio de pulso na mesinha talvez não expressasse a verdade. Então comecei
a solucionar o mistério partindo do quinto suspeito. E isso não apenas foi
confortável espiritualmente, pois desconfiar dos outros é muito desagradável,
como acabou resolvendo a charada: eu havia inconscientemente, por algum motivo,
deixado de seguir a rotina e posto o relógio em outro local. Minha certeza de
que o vira na mesinha não passara de mais um equívoco testemunhal. Estou com o
relógio no pulso, neste momento. Sábado, dia 3.
Fonte: Livro O
romance morreu. Companhia das Letras, 2007, (pg. 157).
Quem é o personagem principal
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