sábado, 2 de janeiro de 2016

IDENTIDADES


As luzes se acenderam de repente ofuscando os olhos do rapaz. Após a vidraça, havia um corredor, alguns centímetros acima da janela, um relógio o colocava num diálogo com o tempo. Lucas esfregou os olhos cheios de luz, deixou que as suas vistas percorressem o corredor. Além dos vidros, paredes brancas, sobre o corredor, bancos vazios. Quando alguém despontava em direção ao seu quarto, desviavam-se para a direita. Cada rosto visto deixava no moço a esperança de que alguém pudesse abrir a porta, entrar, sentar-se ao seu lado. Após acender as luzes, a enfermeira recolheu uma bandeja de curativos, checou os ferimentos do rapaz, apagou as luzes, se foi. Sentado em seu leito, Lucas observou-a caminhando até ela desaparecer no fim do corredor.
         “Talvez seja mais simples esperar devagar, o tempo já corre tanto”. Pensou o jovem, observando o relógio no alto.
         Agulha no braço, exames para fazer, médicos atentos, o silêncio do hospital. O relógio aumentava a sua ansiedade. O corredor acrescentava o vazio, mas as janelas abriam-lhe o mundo. Podia ver o corredor, nele, as possibilidades da vida. Os comprimidos começaram a fazer efeito, alguns minutos após a enfermeira deixar o quarto. O sono lhe pesava os pensamentos. Adormeceu.         
         O corpo imóvel numa máquina, o rapaz percebeu antes mesmo de abrir os olhos. Um jovem da sua idade o examinava. O olhar atento, os gestos leves, a fala mansa, anotado no seu crachá: Lucas Barcellos. A máquina foi engolindo o paciente lentamente para um exame de tomografia. Curiosamente estava internado no Hospital São Lucas. As coincidências tomaram conta do jovem paciente, isso lhe alegrou o instante. A máquina devolveu o rapaz após engoli-lo por cinco minutos. Na parede a sua frente um relógio. O som era de dois em dois, o ponteiro saltava no tempo segundo.
O jovem médico ajeitou suavemente a cabeça do seu paciente. Encaixou a copla do aparelho de maneira que não lhe apertasse o crânio, checou um computador, antes de apertar uma tecla, abriu a copla. Ajeitou novamente o paciente, erguendo milimetricamente no aparelho a cabeça do moço. Olhou o relógio no alto, em seguida apertou uma tecla. A máquina voltou a engolir o seu paciente. O moço sentia o ruído do aparelho estalando, acoplado em sua cabeça. Após cinco minutos, quando o medo já rondava roubando-lhe a respiração, a máquina o trouxe para fora. “Prontinho Sr. Lucas”! – exclamou o jovem médico. – “Vejo que está tudo bem, mas os relatórios ficarão prontos após três dias”. Apertou um botão, alguns minutos depois um enfermeiro veio buscá-lo.
O relógio. A janela, o corredor. No quarto em que se encontrava agora, não tinha nada disso. A janela do seu novo quarto dava para um espaço vazio. Podia ver a grama bem aparada, as janelas do outro pavilhão. Uma enfermeira desfez as cortinas, checou a mangueira de soro, em seguida o médico veio examinar. O jovem observou o médico: ele tinha olhos cansados, voz rouca, cabelos desgrenhados, brancos, comparados a lã. Em suas mãos, muitos papéis. No bolso do jaleco, do lado direito, uma insígnia prateada revelava o número do CRM, o nome do velho médico: Dr. Lucas Cellero.  Após apoiar o estetoscópio no moço em vários pontos do tórax, assinou alguns papéis. Com leitura minuciosa, após ler o último exame, ergueu as vistas, observou o calendário fixado na parede. Pelo movimento, o paciente notou que ali havia um calendário. Durante o tempo que ficou ali, o jovem observou o calendário, passou a contar os seus dias.
De volta ao seu primeiro quarto, observou os funcionários do hospital: as pessoas que se iam, olhadas pelas costas, algumas tinham lombos largos, ombros levantados, caminhavam com passos firmes, de cabeças erguidas. Alguns dos que andavam em sua direção, mas não entravam por sua porta, eram contrários aos que iam: tinham ombros caídos, rostos sisudos e passos de quem não quer chegar. O tempo morria devagar, o calendário apontava isso. Lucas, o paciente, notou isso enquanto ficara naquele quarto, viu o sol sorrindo, brincando com a grama. Por vez, desejou ser menino, ir lá pisar naquela grama. “Duas coisas provocam em nós a vontade de tirar os sapatos, pisar descalço: um chão bem limpo e uma grama bem aparada”. Refletiu. “Isso não é mais possível quando a gente cresce. Somos um calendário, no qual guardamos o tempo, marcamos nossos barulhos e silêncios”. Ponderou o jovem acamado.
No lençol azul estava escrito, na cor verde, Hospital São Lucas. Quis o rapaz entender qual a razão da maioria dos hospitais terem nomes de santos. Seria uma proteção aos que nasciam, ou um encaminhamento para o céu por meio do santo escolhido? O rapaz percebeu: estava em um hospital particular. Sozinho num quarto. Do lado de fora, a ausência de pessoas. Os médicos também eram mais pacientes, as enfermeiras ouviam até o final da frase, sem interromper. A sua mente clareou quando os medicamentos tomaram posse do seu corpo. Lucas recobrou a memória. Lembrando aos poucos do acidente que o levou ali. Pensou na repetição dos homens com nomes iguais. Enquanto andava com seu Skate, fora atropelado na rua da sua casa por Lucas Benitez, quase foi a óbito devido a gravidade do acidente. Indo parar ali no hospital São Lucas, fora atendido por Lucas Barcellos, o técnico de Raio-X. Sobre os cuidados médicos do Dr. Lucas Cellero, ficou internado por vários dias. Por temer a morte que ameaçava mostrar-lhe o além, o paciente Lucas leu o Evangelho de Lucas, com medo de queimar no inferno por toda a eternidade.