domingo, 14 de agosto de 2016

SILÊNCIO NO JOGO



Quando abri a porta estava lá o Leandro com uma bola novinha nas mãos. Atrás dele, os amigos, com um sorriso dizendo: vamos?! A minha reação foi em voz alta: Ouuutraa?!  Todos riram. Em uníssono ouvi: e novinhaaa! Completava dezenove dias que a bola anterior, que era minha, fora destruída pela dona Elmira.
Todos da turma perderam uma bola no quintal da vizinha. O Leandro perdera algumas. Às vezes não era a bola caída no quintal, eram os gritos de gols que incomodavam aquela jovem senhora. Muitas vezes ela vinha até a rua e, quando menos esperávamos, a nossa bola se ia. Os goleiros tinham de cuidar para não tomar gols e ainda espreitar a brava vizinha. O nosso problema era mais técnico: não era permitido dar chutões. Caso isso acontecesse, quem deu o chutão, ficaria de fora por cinco minutos, prejudicando a sua equipe. A regra era aceita para que evitássemos mandar a bola no quintal da malvada.
A rua estava suja. O mato sobressaía, impossibilitando a bola de rolar tranquilamente. Foi quando o Jair teve a ideia de limpar a rua. Deixamos a bola de lado e partimos para a limpeza, tirando também os entulhos da frente da casa da vizinha. 
A rua ficou limpa. A partida começou. Nunca fizemos tantos gols e gritamos tanto. Deu empate, 19x19, com dois gols inválidos para cada lado. Terminamos o jogo, com a bola. Na tarde seguinte, a bola já não era mais nova, mas a nossa alegria sim. Foi numa dividida entre o Jair e o Leandro. A bola escapuliu. O Mauro vinha correndo para receber o passe, a bola bateu nele e foi repousar no quintal proibido.
Sabendo da impossível continuação do jogo, nos restou sentar e ver aquela senhora com uma faca destruindo a nossa alegria. Aguardamos. Silenciosos, atentos. Dizem que a gente se acostuma com a dor, mas nunca nos acostumamos com as bolas destruídas. Durante dez minutos, ali, esperando, nada aconteceu. Acho que a nossa tristeza não está em casa. Falou o Edinho quebrando o silêncio. Sorrimos. Ele tinha razão, mas quem iria lá buscar a bola? Ninguém tinha coragem de ser novamente enxotado, tendo que, além de correr, se desviar das pedras do estilingue da senhora.
Dona Elmira era uma mulher de trinta e cinco anos, sem riso, alta, braços fortes, cabelos amarelos presos com um lenço. Usava sempre vestidos longos. Vivia trancada dentro de casa. Perdeu o marido e o filho num acidente de trator quando moravam numa fazenda. Após um longo tempo se escondeu ainda mais dentro de casa e só saía de lá para mirar seu estilingue ou acabar com o nosso jogo. Não recebia visitas, nem visitava ninguém.
Após um período de espera, caminhei lentamente. Fixei as mãos sobre a grade. Observei. Com olhos atentos vasculhei o quintal. Olhei para o pessoal que não se movia atrás de mim. Fizeram sinais com a cabeça para que eu pulasse. O que fiz com destreza. Aguardei um instante agachado, buscando ver de qual lado da casa ela iria surgir. Nada. O silêncio. A ausência dela estranhava. Pensei no que o Edinho disse: a nossa tristeza estava viajando. Encontrei a bola em baixo de um canteiro suspenso. Peguei e voltei correndo. Antes de chegar à grade, joguei a bola e saltei.
O jogo continuou, mas não estava agradável. Parecia nos faltar algo. Paramos a partida. Como se esperássemos pela dona Elmira, olhamos na direção da casa. O Leandro levantou e caminhou em direção ao quintal com a bola na mão. Enfiou a cara por entre as grades e observou a casa. Repeti os mesmos movimentos. Alguns minutos depois estávamos ali, todos, com as caras na grade, olhando, vasculhando o quintal e observando a janela, pela qual ela abria só para atirar em nós algumas pedras de barro. Com a destreza de sempre, saltei dentro do quintal e fui bater na janela. A curiosidade de olhar dentro da casa era maior que o medo de estar na mira da senhora vizinha. Bati na porta. Gritei. Bati na janela sem medo de estourar os vidros. Escutei um “me ajuda”. Gritei novamente e a voz ecoou em maior altura: “me ajuda, pelo amor de Deus”! Gritei meus amigos e pela porta dos fundos entramos na casa.
Dona Elmira estava caída, com uma das mãos apertando um pano dobrado na cabeça. Uma escada por cima e um pé preso em um dos degraus. Nunca soubemos quanto tempo ela ficara ali esperando por socorro. Chamamos os Bombeiros. Os paramédicos chegaram. Ela tinha uma costela quebrada e a cabeça suja de sangue seco.
Durante dias jogamos bola na rua e cuidamos da dona Elmira. Entrávamos na casa antes dos jogos e depois dos jogos. Ela dizia o que precisava e a gente providenciava. Isso durou até que ela se recuperasse por completa.
 Chegou um tempo em que não tínhamos condições de comprar bolas. Para que não incomodássemos a vizinha com o nosso futebol, os nossos pais não nos davam dinheiro. Ajuntamos alguns sacos plásticos, enrolamos fitas adesivas até que se tornasse uma bola.  Após uma semana jogando com a bola de fitas, a dona Elmira surgiu pelo lado de sempre. Pegamos a bola e nos recolhemos num canto da rua. Ela se aproximou sem riso. O olhar fixo em nós. Usando bermudas e calçando tênis. Nas costas, a bolsa das pedras, mas sem o estilingue nas mãos. Aproximou. Ficou parada por alguns instantes buscando olhar o nosso olhar. Não cabiam palavras em nossas bocas, o medo levara todas as letras. Ela tirou das costas a mochila das pedras e disse: quero lhes dar algo, mas com uma condição. Assentimos com a cabeça.  Ela tirou uma bola nova, novinha. Colocou-a no chão. Atirou para longe a mochila das pedras. Colocou um pé sobre a bola. E com meio riso, apontou a bola e disse: querem saber qual a condição de vocês ganharem essa? Vou jogar com vocês.