INTRODUÇÃO AO GRITO
Para todas as coisas há um começo. Não falo de coisas inventadas, até
para inventar é preciso começos. Começados sem evidenciar que é um início. Tenho
a manhã e tenho janelas e tenho pássaros e tenho louças na pia e tenho na
torneira gotejares de existência. A gota germina. Brota. Ressurge imperceptível
de uma torneira desgastada. Da mesa, observo a água surgindo de suas entranhas.
Sobre minha cabeça há um relógio. Ele também possui seus princípios. Os
ponteiros seguem obedecendo a conta dos segundos e definindo minutos. Sei que
os centésimos estão neles. Meus olhos não os veem, mas meu corpo sente. Sabe que
envelhece aos poucos.
As gotas seguem, despencam sem pressa. Os coágulos também possuem seus
inícios. Sinto as moléculas da água se reeditando, meus olhos as absorvem. Os
pássaros com seus ruicantos invadem meu silêncio, sinto, elevo-me, mas não me
perco da gota. Sou testemunha de um ato. De vida e de morte.
Acho que as palavras são como as gotas. Elas rasgam nossas entranhas.
Regurgitam, até virar verbo e se fazer carne. Essa mínima minúscula partícula
do tempo que define nosso direito de ser, tece o instante, recorta momentos.
Respeito o momento da gota. Cada uma tem seu instante. Elas brotam. E
chegam no seu ponto. E fazem do seu acontecer um acontecido parto. Golpeiam o
zinco. E morrem apressadamente devagar. Em silêncio se transformam e em
silêncio se desfazem. Só há barulho quando algum objeto alheio ao seu habitat
cruza o seu caminho.
Esqueci de propósito uma colher em baixo da torneira só para ouvir o
morrer das gotas. Atento ás intermitências, morri junto, como cada uma.
Inventei um tempo para observar as gotas. Acordar com vontade de conversar com
o tempo é ser gota. O tempo nunca tem tempo. E se sabe que precisa parar não se
perde com coisas vãs. Perder tempo é do homem que nasce morrendo.
Como passagem contínua, penso nos encontros. Eles se formam como gotas. Como
um ato empírico, penso nos espermas, nos óvulos, nos fetos e no homem. No homem
que chega e no homem que vai. No que cuida e no que abandona. Já fui molécula
dentro de um corpo. Chegou um momento em que foi preciso ser expulso para ser
como gota nesse mundo. Ser expulso tem suas vantagens, a gente se torna mundo,
ou dono dele. Um anjo caído é de tempo infinito. Não conheço o tempo dos anjos,
imagino-o como o das gotas. Acho que morrem de prazos iguais. Se a vida é perfeita, a morte também é. A
beleza da existência está na ordem, mas não há existência bela se não houver
uma medida de caos.
As gotas se formam delicadamente, criam um perfil e caem.
Saio das vias que levam á coagulação de um músculo de água, para me ater
a beleza de ser gota formada. No instante em que ela é gota, a nenhuma
maravilha se compara. Ela tem tão pouco tempo para ser bela, que faz da espera
esperada, um cristal. Capaz de transformar o olhar do ser que só tem o instante
para ser tudo, mas que se dispersa ouvindo gritos na introdução.
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