sexta-feira, 10 de novembro de 2017

INTRODUÇÃO AO GRITO



INTRODUÇÃO AO GRITO

Para todas as coisas há um começo. Não falo de coisas inventadas, até para inventar é preciso começos. Começados sem evidenciar que é um início. Tenho a manhã e tenho janelas e tenho pássaros e tenho louças na pia e tenho na torneira gotejares de existência. A gota germina. Brota. Ressurge imperceptível de uma torneira desgastada. Da mesa, observo a água surgindo de suas entranhas. Sobre minha cabeça há um relógio. Ele também possui seus princípios. Os ponteiros seguem obedecendo a conta dos segundos e definindo minutos. Sei que os centésimos estão neles. Meus olhos não os veem, mas meu corpo sente. Sabe que envelhece aos poucos.
As gotas seguem, despencam sem pressa. Os coágulos também possuem seus inícios. Sinto as moléculas da água se reeditando, meus olhos as absorvem. Os pássaros com seus ruicantos invadem meu silêncio, sinto, elevo-me, mas não me perco da gota. Sou testemunha de um ato. De vida e de morte.
Acho que as palavras são como as gotas. Elas rasgam nossas entranhas. Regurgitam, até virar verbo e se fazer carne. Essa mínima minúscula partícula do tempo que define nosso direito de ser, tece o instante, recorta momentos.
Respeito o momento da gota. Cada uma tem seu instante. Elas brotam. E chegam no seu ponto. E fazem do seu acontecer um acontecido parto. Golpeiam o zinco. E morrem apressadamente devagar. Em silêncio se transformam e em silêncio se desfazem. Só há barulho quando algum objeto alheio ao seu habitat cruza o seu caminho.
Esqueci de propósito uma colher em baixo da torneira só para ouvir o morrer das gotas. Atento ás intermitências, morri junto, como cada uma. Inventei um tempo para observar as gotas. Acordar com vontade de conversar com o tempo é ser gota. O tempo nunca tem tempo. E se sabe que precisa parar não se perde com coisas vãs. Perder tempo é do homem que nasce morrendo.
Como passagem contínua, penso nos encontros. Eles se formam como gotas. Como um ato empírico, penso nos espermas, nos óvulos, nos fetos e no homem. No homem que chega e no homem que vai. No que cuida e no que abandona. Já fui molécula dentro de um corpo. Chegou um momento em que foi preciso ser expulso para ser como gota nesse mundo. Ser expulso tem suas vantagens, a gente se torna mundo, ou dono dele. Um anjo caído é de tempo infinito. Não conheço o tempo dos anjos, imagino-o como o das gotas. Acho que morrem de prazos iguais.  Se a vida é perfeita, a morte também é. A beleza da existência está na ordem, mas não há existência bela se não houver uma medida de caos.
As gotas se formam delicadamente, criam um perfil e caem.
Saio das vias que levam á coagulação de um músculo de água, para me ater a beleza de ser gota formada. No instante em que ela é gota, a nenhuma maravilha se compara. Ela tem tão pouco tempo para ser bela, que faz da espera esperada, um cristal. Capaz de transformar o olhar do ser que só tem o instante para ser tudo, mas que se dispersa ouvindo gritos na introdução.

Nenhum comentário:

Postar um comentário