Crônicas e Contos



PARA LER ENQUANTO ESPERA

ENTRE CONTOS & CRÔNICAS

                                          NILSON FERREIRA




O Tempo na parede



Contos & crônicas

Nilson Ferreira



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Índice

01 – O Depois.
02 – O quê disseram os pais? O quê dirão os filhos?
03 – Jesus e a multidão dos que não viram.
04 – Todo mundo já gostou de alguém.
05 – O encontro.
06 – Luiza, eu gosto do seu nome.
07 – O tempo na parede.
08 – Preciso aprender a ficar comigo.
09 – Por que temos um nome?
10 – O homem de Kriptonita.
11 – Pensamentos robóticos.
12 – O menino que não agradava.
13 – Diazando.
14  Uma questão de elegância.
15  Cadeira de balanço.
16 – Os sentimentos da Silvanéia.
17 – Ontem eu aprendi.
18  18 anos.
19 – Meu amigo Nético.
20 – Quem espera sempre alcança.
21 – Muitos silêncios.
22 – A casa do outro lado da rua.
23 –  O outro lado de um lado.
24 –  Língua de tamanduá.
25 – Talvez você goste. 
26  O rio que passava entre nós.
27  Vilhena, e os outros?
29  Amanhã, no café.
30 –  Flores lindas dizem não.
31  A Microsoft e eu.
32  O codinome
33 – Torre de Babel.
34 – Qual a cor dos seus olhos?
35 – 


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                  O DEPOIS

            De vez em quando o tempo nos prega uma peça e desprevine o “depois.” A vida que imaginamos ao nosso dispor se descamba e por caminhos não planejados, foge do nosso favor sem reconciliação. Eu não confio mais no “depois”, nem aceito os seus sinais. Vivo em busca dos momentos inesquecíveis que farão do amanhã lembranças de um hoje magnífico, mas porque fito o futuro o meu presente se descamba, perde o sabor.
            Sou como uma roupa justa que precisa a todo instante se ajustar ao sistema do corpo. As circunstâncias me puxam.

            Numa sala, aguardo a minha nota. O professor as dita como se quisesse evitar uma humilhação. As minhas teorias se justificam. Uma escultura andante passa por meus olhos e me distancia das demais coisas, do tudo ou de quase tudo. Como um beija-flor diante da flor, meus olhos param. Ela percebe o meu olhar e não foge dele. Insisto em dizer: a beleza paralisa os humanos, mesmo por alguns segundos.
Ela arrasta a cadeira, deposita sua bolsa sobre a mesa. Ajeita os cabelos e puxa a calça. Rebolando, faz vários movimentos. Não sei se para ajustar a calça ao corpo ou o corpo à calça. Vi a discordância em concordância. Quem não cobiçaria grudar em tanta beleza? Formosa. De encantos raros. As vestes em desacordo não descartavam seus privilégios.
Meu olhar se perdeu nos movimentos e se achou no sorriso dela. Cabelos encaracolados, escuros como uma noite rareando a luz da lua. O olhar forte, como felina fitando a presa, olhou-me como se já me conhecesse. Tive o mesmo olhar e acho que o mesmo pensar. Tenho a impressão que há sempre duas pessoas pensando a mesma coisa. Se alguém discorda, por que dois veículos se chocam ao cruzarem uma rua? Outro dia, numa loja dessas que vendem no crediário, vi o que chamam a luta dos Juvenal. Assim mesmo, Juvenal no singular. Tinham a mesma idade, naturais de São Paulo e vieram morar aqui em tempos diferentes. O destino os fez parecidos no nome e na idade. Pensei nos pais deles no tempo de feitura. 
            Meus devaneios tolos foram abolidos com um “tchau” e leve dançar de dedos. Segui seus passos. Em cada espaço de um passo, um embaraço.
            O olhar que parecia me conhecer se escondeu depois da porta. Pela vidraça observei seu caminhar. Há pessoas que andam, enquanto algumas desfilam.

            O tempo passa, a beleza passa, e a felicidade que fica se encarrega de guardar as lembranças dos momentos raros. Um olhar ou um sorriso podem construir tantos instantes, podem refazer um ser humano, podem dar vida a alguém esquecido na vida ou podem simplesmente melhorar o mundo.
            Depois daquele olhar que parecia me conhecer, os minutos eternizaram-se. No aconchego do riso dela tornei-me conhecido, não de fala, mas por um olhar que diz coisas, porém guarda os seus mistérios.

            — Amiga, desculpe. Prometi que traria o livro pra você, mas fiz tantas coisas hoje que nem deu pra passar em casa.
            — Você não foi almoçar em casa?
            — Não tive tempo.

            Preso a um questionário, ouvi atrás de mim um papo de amigas. Ali estava alguém traída por um “depois”. Por que existem os depois? Depois de agora, depois de amanhã, depois do depois e depois do depois de amanhã...

            A escultura andante voltou ao seu lugar. Era outro dia. Outro momento, outro sorriso, mas o mesmo olhar. Um olhar que não afugenta o coração.

O instante trouxe algo mais: o aconchego do riso dela.

No tempo presente, me fiz presente ao riso. Não quis o depois entre nós amigos, quis ser amigo sem pensar num depois.
            Um depois tem tantos rumos, e um deles é esse que percebo no meu destino, fora de rumo.



O QUÊ DISSERAM OS PAIS? O QUÊ DIRÃO OS FILHOS?

            No meio da viagem alguém se ocupou da poltrona ao lado. Remexeu, virou, acomodou-se. Nada disse. Meus olhos vagavam nas páginas de “O banquete.” O que diria Platão sobre o amor nos dias de hoje? O amor possui a força necessária para cada dia de um ser e dura o tempo de uma busca. Alguns o sentem em maior intensidade, outros, nem tanto. Amar o próximo como a ti mesmo, já dizia Jesus. Cheiro de ônibus me dissimula o estômago, vizinho de poltrona afeta os anseios. Afinal, uma viagem longa faz sensível a convivência.
— Ta indo pra onde, mano?
— Para a cidade adiante – disse sem querer conversas.
— Quer dizer, a próxima?
— Sim.
— Porque não disse antes?
— Eu disse.
            O rapaz sorriu. Escorregou na poltrona, adormeceu. Cansei do livro. A viagem ia começar. O tempo de espera, espero lendo. Fechei os olhos como o meu vizinho e no tempo seguinte a disputa começara. Cada balanço do veículo nossos cotovelos se tocavam. Uma eu ganhava o apoio, outra ele prevalecia. Ônibus devia ter para cada poltrona um lugar para cada passageiro colocar os braços. Sei que têm, mas é estreito como a paciência de um técnico de futebol.
            Rousseau afirma “O homem nasce bom, é a sociedade que o corrompe.” Penso nos meus maus costumes, a sociedade não tem nada com isso. Sou eu que penso, que escolho... que decido? Não! Se pudesse decidir queria uma viagem com duas poltronas, só para mim. Não sou anti-social é que não gosto de acotovelar ninguém.
            As luzes se acenderam, o moço não acordou. O veículo parou por alguns instantes e em seguida ganhou a viagem. O jovem continuava alternando o respirar. Não sei qual a diferença de um respirar sonoro de um ronco. Respirar com som para mim é roncar. Assustado, o observei como um avaliador de quadros. No alto da cabeça uma grande mecha preta se sobressaía das outras cores, do seu lado esquerdo um vermelho que não afugenta o olhar ditava o tom, e o distinto azul preenchia o lado direito. Meus olhos seguiram a linha dourada das costeletas como os movimentos de torcida numa partida de tênis.
            Adormeci. Em partes, pois me indagava constantemente se eu estava em um ônibus ou numa nave espacial ao lado de um extraterrestre. Abri os olhos e comparei com as luzes pálidas do painel acima, não era jogo de luzes. Não insisti na comparação, pois o painel pareceu me dizer: não é culpa minha. Encolhi na poltrona, meus pensamentos decifravam a estranha figura.
— O que você tava lendo, mano? Ele perguntou se ajeitando enquanto se enrolava numa toalha protegendo-se do frio.
— O banquete de Platão. – Respondi mais amigo dessa vez.
— Hum... coisa de intelectual, saquei! – Estalou os dedos. – Percebi agora como você fala. Mas não dou trato nessas paradas não, meu negócio é curtir a vida.
— Eu te entendo. Já tive a sua idade e cada um possui uma curtição adequada para o seu tempo.
— Isso, mano! Coisa de intelectual. – Falou mudando a voz em tom sarcástico.
Sorri. No tempo dele havia razão.
Pensei em tudo, mas tudo mesmo. As fotografias do meu pai me foram uma saída. Sorri da moda que ele seguia. Envergonhei-me das camisas e das calças que ele usava e do corte de cabelo da época, ruborizei. Olhei novamente os cabelos do rapaz, perdi noção do futuro. Se Rousseau estivesse ali? Diria que um ser humano se corrompeu com uma arara? A moda dita os costumes. Pensando nos dias do meu pai, cogito os dias que são meus. Reflito no jovem arara. A sociedade é quem providencia os nossos costumes? Passado, presente,  futuro... O quê pensar dos pais? O quê dirão os filhos?



JESUS E A MULTIDÃO DOS QUE NÃO VIRAM.

          Com demasiada calma, o homem ocupou o espaço que sobrara no meio dos homens. Entre o grupo, uma bíblia aberta. Alguém tinha um violão. Alguém cantou e tocou tão bem que choraram diante dele. O grupo seguia o evangelho e fazia daquela praça a sua “Ágora.” O homem certificou-se do tema. Correu os olhos pela roda de amigos e voltou a concentrar no que diziam. Quando alguém tomava a palavra ele ouvia atentamente, como se, além de ouvir, lesse por dentro aquele que dizia.

            “Se Jesus participasse dos nossos cultos hoje, renderíamos reverências?”
           
Cinco jovens. “Cada um traz a expressão de algum apóstolo”, o homem pensou. Outros que passavam por ali se encantaram com os moços que se reuniam em uma praça a fim de discutir o evangelho. O homem amou os jovens que faziam dos seus movimentos uma cadeira de balanço. 
            O homem viu Pedro quando um moço se levantou para defender a sua tese. Ao final da fala daquele, levantou outro jovem e deu sequência ao discurso. A fala mansa, envolvente e com palavras que acalmavam o coração. O homem viu João. Não o velho, mas um João novo. Ao contrário do primeiro rapaz, que discursou com palavras desencontradas, mas que dava destino ao coração.
“Pedro andou sobre as águas, teve impulso, explodiu, foi adiante, errou muito, mas arriscou-se mais”. – Refletiu. No impulso ele cortou uma orelha, contestando o evangelho que vem pelo ouvir, e ouvir a palavra de Deus. Jesus com bondade a colocou no lugar. O guarda não só ganhou a orelha de volta, recebeu também o toque das mãos do Senhor. O homem sorriu ao refletir: foi o discípulo que viu Jesus transfigurado e aquele que ouviu do próprio Deus:
— Esse é o meu filho amado em quem me comprazo, escutai-o.
Penso que Pedro não queria que outros ouvissem. Qual a função das orelhas? – Indagou depois de refletir.
 Penso que Jesus ainda cola orelhas cortadas por Pedros desavisados que, na pressa das palavras, impedem a verdade de se fazer válida.
O homem sorriu das suas deduções.

            Uma moça, que não conhecia muitos acordes, no intervalo da fala fez o violão acender o coração do homem, que ouviu atentamente a voz da jovem. “Houve uma mulher que usou os cabelos para enxugar os pés de Jesus, essa aí usa uma voz sem recursos, mas que limpa o coração”, cogitou o homem em seu íntimo.

            Outra fala, outro moço, outro nível no discurso. Aquele que veio depois estava preparado para a homilia daquele momento. Passou dias, gastou noites, devorou livros, fez pesquisas, se preparou. Seu falar tinha coerência. Seu discurso, poesia e riqueza. Os detalhes prendiam a atenção do homem. Atento como a um menino ouvindo a história do pai, pensou em Paulo, que havia visitado o terceiro céu, mas porque era humano não pôde ficar lá por muito tempo. A santidade esbarra o tempo todo na comunhão. Moisés ficou um grande tempo na presença de Deus. Esse tempo perdeu a essência quando, ao descer, um bezerro de ouro lhe saltou aos olhos. Um bezerro de... Ouro nos templos, sinal de unção. Outro tempo é outro tempo.
            O homem quis falar. Parabenizá-los por tal atitude. Felicitá-los pelo conhecimento de Deus e pelo esforço das suas mensagens, afinal, estavam engrandecendo o ensino de Jesus. “Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome ali estarei”. Queria dizer algumas palavras que lhes abrissem a mente, não pôde. O assunto era intelectual, e espiritual, não permitia conversa de quem chegava para mudar o discurso com perguntas. Por que temos mais respostas que perguntas?
Olhai os lírios do campo, eles não trabalham nem fiam, mas nem Salomão que recebeu das mãos de Deus tamanha sabedoria possuiu a grandeza de um lírio. O homem fitou os céus, reverenciou o senhor Deus. Olhou as pessoas e amou-as. Observou os campos e se encantou com os lírios. Os Humanos olham o céu e se encantam com o Senhor. Olham as pessoas e sentem-se ungidos. Olham os lírios e se encantam consigo mesmos, por verem os lírios.
O homem se lembrou do caminho de Emaús. Os fatos já são uma resposta. As indagações nos levam ao processo dos fatos. Dois homens caminharam com Jesus. Tristeza demais ou alegria em abundância ofuscam a luz, enfraquecem a visão.

            O homem ficou maravilhado com a programação. Todos ali se abraçavam e ele tendo os braços abertos não pôde abraçar. Eles estavam felizes com o evento. Deus tinha abençoado, ninguém errou a música, nem o discurso.
A plateia aplaudiu.
Ninguém se converteu.
            O homem já se afastava quando a moça lhe puxou o braço. Clamou uma volta e revelou que não sabia cantar nem tocar e que a sua vontade era a de se parecer com Jesus, que assim ela pregaria sem palavras. O homem sorriu e afagou a nova convertida. Alguém começou a tocar e a moça se dispôs a dançar os louvores, se dispersando da presença do homem.

– Pai, perdoa-os. Eles não sabem o que fazem! – Disse, estendendo as mãos para os céus.
O homem sorriu.
            “Os homens sabem muito de mim e do meu Pai, mas não me reconhecem quando estou no meio deles”.



TODO MUNDO JÁ GOSTOU DE ALGUÉM 

            — Todo mundo já gostou de alguém.
            Ouvi uma das moças dizendo quando passavam por mim. No corredor da universidade pessoas se desencontravam. Sentidos contrários também são caminhos. Com os passos não posso ir e voltar ao mesmo tempo, mas com os pensamentos posso partir ao mesmo tempo em que retorno. Não saio de mim. Às vezes até queria, mas tudo que consigo fica na imaginação. Quando gostamos saímos da primeira pessoa do singular para buscar repouso na primeira pessoa do plural. O eu busca o nós. O mundo passa a ter sonhos, sonhados com alguém.

            A frase quis que eu continuasse ouvindo a conversa. Passos ao contrário diminuíram o som, me distanciaram do fato, mas me trouxeram para dentro de mim. A força dos contrários. Há sempre um ir enquanto há um voltar. A frase ficou. Parti para um passado, não distante, mas lembrado. Lembranças lembradas não passam, ficam para aborrecer o presente.

            A filosofia desfilou pelo corredor e abriu caminho em um ser que não sabia se “todo mundo já gostou de alguém”. Pensava que só eu. Há tantos jeitos de gostar. Sartre já declarou: “Para saber uma verdade qualquer a meu respeito, é preciso que eu passe pelo outro”. Dicotomia? Sofia ao passar por mim fez pensar nos amores que desfiz e os que eu desprezei.
            Ela ditava seus conhecimentos à Clara e o interstício clareou não os meus gostares que de tanto mudar perderam a essência de perceber o outro, mas iluminou esse ser que já gostou ou gosta de alguém.

            Todos os dias passamos pelo outro. Alguns ficam, outros passam como os dias. Um dia só é lembrado quando em seu passar deixa acontecimentos belos ou trágicos.

Do quê lembramos no final do dia?

            O corredor não era suficiente iluminado para ver os olhos de Sofia, também não era um tanto escuro que não me deixasse ver beleza na inteligência. Há inteligências que fogem da generosidade dos livros para se esconder nos espelhos. Espelhos aprisionam por fora, a leitura aprisiona por dentro. Depois que o tempo andou, a beleza que reflete é a que vem de dentro.
            Nós crescemos. Revi Sofia. Num sentido contrário, penso: há beleza nos contrários. Um beijo nasce de dois movimentos contrários, um abraço...

            Observei os cabelos presos feito rabo de cavalo. A trança era como a minha impaciência buscando encontrar a palavra certa para continuar a frase. Ela se escondia atrás de um notebook rosa. Ouvi a professora no canto da sala avisar que a biblioteca estava para fechar. Ela acelerou seus afazeres e eu acelerei um diálogo sem rumo que, com ela, ganhou direção. Cogitei viver no mundo de Sofia. Não na estória de Jostein Gaarder, mas no encanto que à minha frente dispersava os meus caminhos. Que caminhos? O do saber. Aprender sempre, a vida me deu esse destino. Aprendo tanto que no final quando me perco, volto a aprender o que já aprendi. Tempos novos trazem conhecimentos modificados. Havia uma imensa razão em Heráclito quando afirmava que não é possível mergulhar duas vezes no mesmo rio, porque o rio e quem nele mergulha não são mais os mesmos no segundo mergulho. Assim concebo o meu saber, ele deve se renovar a cada instante.
            Sofia abriu um sorriso quando mencionei a frase. Gesticulou e indagou com espanto. Não disse palavras. Estalou os olhos e movimentou as mãos do meio para fora.
            — Quem te contou isso? Disparou. Sem brandura.
            — Ouvi alguém dizer no corredor.
            — Sei. O cavalheiro possui a mania de ouvir as conversas no corredor?
            — Se não quer que alguém ouça, não diga as coisas aonde todo mundo pode ouvir. – Fiz uma pausa. – Você tá coberta de razão, todo mundo já gostou de alguém...
            — Eu disse para a minha amiga...
            — Não, disse a mim também, eu ouvi.
Ela calou-se observando a tela do notebook.
            — Há quanto tempo nos conhecemos?
            — Há muito tempo, mas de conversa, há alguns minutos. – Respondi olhando no relógio. Ela guardou o notebook. Suspirou desolada. Silêncio...
            — O quê você ouviu?
            — Que todo mundo já gostou de alguém. – Ela passou por mim, mas antes de se distanciar, refletiu.
            — Pena descobrir isso agora, pois todo mundo já gostou de alguém. – Com ênfase no “todo mundo” disse girando a cabeça com ar de ironia.
            — Todo mundo também já odiou alguém de quem já gostou...
Eu disse sentindo o impacto das palavras dela. E sobre o meu raciocínio, acho que ela nem ouviu. A ira esconde o poder dos ouvidos.
            Os passos endurecidos, a paciência escassa, uma beleza rara e os gestos sem brandura confundiram o meu ser. As pessoas não são tão dóceis. As pessoas não são tão amargas, as pessoas são... despercebidas.

            Clara clareava o sorriso dos rapazes quando passava usando aquelas vestes. Os nossos olhares a seguiam como um espectador em corrida de fórmula-1. Ela cerrava as sobrancelhas. Sendo claro, ela não gostava. Por quê? Há certos olhares que dizem mais que palavras, mas admiração é admiração, desejos possuem outro olhar. Mike Murdock já disse: “Não podemos reclamar daquilo que permitimos”. Há um deleite em nossas estimas. Quando ser notado é uma graça, não modificamos nossas atitudes.

            A sala já estava quase vazia quando Sofia terminou a sua apresentação. Ninguém é bom na primeira vez e apresentar um trabalho valendo notas no final do semestre, beira o terror. Sabemos que ninguém é bom de primeira, mas queremos ser. Esse anseio... Deixa pra lá. Não posso confessar tremor nas pernas, falta de ar, respirar que não respira, fala que não fala...
             Clara foi ajudar Sofia a guardar o datashow. Usava calça jeans que não prendia a atenção.
            — Desculpe. – Sofia disse quando aproximei para guardar a caixa de som.
            — Do quê?
            — Pela última conversa.
            — Já desculpei.
            — Verdade? Ficou me observando enquanto enrolava uma extensão.
            — Posso ajuntar essas pastas? Clara perguntou.
            — Sim. Pegue aquelas também.
            — Onde?  - Clara indagou.
            — Naquela cadeira lá no canto.
            Mais bonita que Clara, chamava menos a atenção pelo seu jeito de vestir. Clara, menos preocupada com os estudos, conseguia menos conteúdo para apresentar um trabalho. Sofia sempre assumia a parte mais complicada das tarefas.

            — Você foi muito bem. Conhece bem sociologia, manja de filosofia, entende Piaget. Você tem bons argumentos...
            Eu disse. Encantado.
            Ela sorriu sem se inebriar com minhas palavras.
            — Gosto de aprender. Leio de tudo. Sorriu.
            Clara passou entre nós com algumas pastas nas mãos. Observei o fio do microfone deslizando como uma cobra enquanto Sofia o puxava. Sobre as poltronas ainda havia cadernos espalhados. Alguns conversavam na porta de saída. Quando iniciamos a apresentação a única porta era de entrada, quando terminamos, porta de saída. O contrário que vinha, era o mesmo que ia, assim como os humanos, aproximamos com as palavras e afastamos com as palavras.   
            Não concordo quando a beleza traz por dentro a ironia. A vida que circula nossos dias possui o poder da transformação, mas por que existem pessoas irônicas? Elas nasceram assim? Quem as transformou?  Rousseau responde: “O homem nasce bom, é a sociedade que o corrompe.”
Tínhamos treze anos quando começamos a estudar na mesma sala. Ela era tímida, sentava na primeira cadeira à minha direita. Por chegar atrasado, encontrava-a sentada quando eu passava. Rareava um olhar que cruzava o meu, não como alguém que já se conhece, mas de quem deseja se conhecer. Tinha olhos castanhos, riso raro com covinhas e uma extrema habilidade para tirar dez em todas as matérias. Eu? Bem, era muito popular para se preocupar com os estudos. Estudamos três anos juntos. Nunca conversamos, mas reparava nela como alguém que obedece aos olhos. Era ela linda, não demonstrava afeição à minha popularidade, também não frequentava a minha turma. Fomos separados de sala por cinco décimos na prova final de matemática. A popularidade desviou os meus rumos. Reprovado em matemática, mudei de escola. Ainda me lembro quando eu parava de conversar na hora da chamada só para ouvir a única professora que não chamava por números e sim pelos nomes. Na voz da professora era o nome mais doce: “Sofia Albuquerque”. E mais doce ainda eu ouvia: “Presente professora”. Assim, sem ironia. Das colegas de sala foi a única que nunca se afastou das minhas lembranças, por quê? Um dia eu explico a razão de um desprezo. O que é diferente contradiz o ego.
O tempo volta? Não. Não volta. Nem as pessoas voltam. Os caminhos se cruzam e as pessoas se encontram. A universidade agora é esse ponto de encontro. Os corredores é o lugar onde nos vemos. E o tempo, um pivô das coisas acontecidas que se tornam reminiscências.

            O meu nome é Aparecido Santos, mas não sou aparecido e nem santo, gosto de estar presente nos lugares onde eu tenha informações que me fazem compreender as pessoas, pois sou uma pessoa incompreendida. Às vezes eu apareço e perco a santidade, como disse, gosto de estar informado.
O tempo que era já não é, mas continua sendo um tempo de falas esperadas, pois todo mundo já gostou de alguém, mas não soube como dizer.

           
O ENCONTRO.

   Em meio a tantos sorrisos e vozes altas, um fitar de olhos pairava em minha direção. Um olhar que não olhava, mas que me via. Meu despertar foi de encontro ao movimento da visão. O tempo se consumiu, em segundos se refez no que era sério, penetrante, fugaz, mas que não irradiava medo. O sol do meio dia rompia árvores de longas sombras, os estudantes corriam de um lado a outro com a ansiedade de sempre e professores e alunos se misturavam ao se assentarem em banquetas de cimento tendo a suas disposições mesas de concreto. Por que o meu medo? Já não andei bastante no caminho do ensino? Não. Houve mudanças. O verbo aprender não indica o tempo, nem recomenda um momento exato. Aprender é instruir-se, conhecer um pouco mais do tudo é apreciar o nada. O meu coração bateu forte enquanto o sinal durou, depois que parou, cessou também a aceleração. Dizem que o medo paralisa, a mim não paralisou, mas a mistura da coragem e o medo provocaram um terremoto, meus joelhos confessaram o tremor. Andei em direção à sala, confesso, meio sem direção.
            A primeira conversa foi de uma rara calma, acho que não encantei, mas convenci. Trinta nomes, rostos desconhecidos. A expectativa desvirtua o ser e faz soma de dois: bom + bom = agradável. Bom, +, ruim = caos na sala.

            O sinal soou como uma trombeta, o meu respirar se desfez como um balão de ar. Final da aula. Lugar novo é estranho, tem muita coisa para ver. Digo estranho, pois, provoca emoção despercebida, desatenta, que quando desperta, não acrescenta.

Um velho num quadro acrescentou.

Abri os olhos, sorri da minha burrice, nunca havia lido Machado de Assis.

            A gravura na parede revelava minhas tolices. Não tive culpa por ser tolo. Machado não é uma obrigação, é uma consciência. Isso faltou a mim e ao professor que me forçava ler quando tomei gosto por leitura. Herculano ficou gravado na minha memória, mas hoje eu o troquei pela beleza de um Dom Casmurro. Penso em como foram os meus dias com Herculano. Os gibis da Mônica, do tio patinhas e os de bang-bang. Livros espíritas, filosofia, teologia e psicologia. Aprofundei-me nos livros de autoajuda. Queria buscar segurança em mim, na verdade queria gritar: sai de mim Herculano! Meu amor por livros não lhe pertence.
Hoje eu comprei um Machado, não pretendo cortar árvores, quero cortar de mim o amor que Herculano quis impor ao apresentar Dom Casmurro. Essa coisa de amor demais apaga o encanto. Amor para ser amor precisa apresentar graça, lisonjas, enlaçar doçuras, conquistar. Depois mostra a verdade, que para mim tem seu próprio tempo para existir. 
            O olhar que não me olhava, mas que me via, voltou a me encontrar. Com visão demorada esbarrei naqueles olhos como quem não queria ver. A agitação dos estudantes voltou a ganhar formas, com mais pessoas, os que eram e também os que não eram. A turma “A” se comportou bem. O programa educacional ganhou seu primeiro dia, eu ganhei certezas, certas para um recomeço.
Pouco a pouco a multidão se dissolvia. Do grupo ficaram alguns jovens, alguns professores e o diretor. De costas para mim, os cabelos da cor da noite ausente da luz da lua, cobriam-lhe os ombros. O tempo desandou. Andou com as horas. A sirene soou e a multidão dos que não eram, inundou o pátio. Senti saudades, pensei no quase velho que sou hoje. Uma professora saiu aos gritos praguejando um adolescente que fugiu da sua justiça. Pediu-me para que repreendesse o menino. Não podia, as minhas lembranças não permitiam, fiz pior que o garoto na mesma idade. Consciência pesada omite a ordem.
 Os jovens que estavam sentados levantaram-se fazendo menção de ir embora. E aqueles olhos que me conhecia, não de fala, mas de olhar, voltou a me inundar. Olhos que falam por silêncios, esperam encontrar corpos que desmerecem as palavras. Hevelin é cativante, de beleza rara e doçura nos gestos, de rosto meigo e olhar singelo, mas que não revela facilmente os seus mistérios. Eu precisava de amizades, ela buscava um amigo. Ambos descobertos num tempo que não era nosso, mas que existiu ali, por um olhar que não me olhava, mas que me via.  




LUIZA, EU GOSTO DO SEU NOME

Ela estava sentada na arquibancada da quadra do colégio, tinha feições de choro e, sozinha, rejeitava o mundo. Era tão pequena para um grande mundo. As dores? Maiores que o universo. Com onze anos, pensava que os adultos não tinham dores humanas, afinal, onde estão os meus pais? Ou melhor, onde estão os pais? Questionava. Questionava e questionava. As suas perguntas eram grandes como o abandono. O seu pai tinha uma nova namorada e outra casa. A sua mãe, um novo namorado e a ficção de que encontrara o príncipe encantado. As princesas e os príncipes encantados roubam das pessoas o direito de serem pessoas. 
A sua data de nascimento não era tão distante da sua idade atual, mas ela já se apaixonara. Já namorara e também já trocara de garoto três vezes. O encanto de um príncipe dura até se acostumar com o outro. Ninguém está preparado para se acostumar com alguém. A beleza perde a essência quando se acostuma e é nesse momento que precisamos ser fiéis, não ao outro, mas a nós mesmos.
Ela não gostava dos espelhos, mas gostava de maquiagem. Maquiagem sem espelhos distorce a beleza. Ela não gostava de estudar, mas sabia que para entender as respostas precisava de conhecimentos e, para isso, era necessário ler. Ler muito. Mas não queria. Estava presa nos questionários que roíam por dentro. As indagações lhe cansavam a alma, doía o corpo, mas mesmo cansada não conseguia dormir. Depressão.
Quem me escolheu para viver? O meu pai de nova namorada não se lembrava de mim. Quem me escolheu para amar? A minha mãe apaixonada me via, mas não me enxergava. Quem me escolheu para ficar comigo? A minha avó, mas não foi na paixão dela que eu nasci. Nem sei por que nasci. Sei que tenho um nome, que tenho que ir para a escola, que tenho tantas coisas... Mas tudo isso não têm sentido.
Perguntas. Ela se questionava. Queria se ajustar ao mundo. Perdeu a vontade de viver. Fazia planos. Muitos planos, mas sempre o mesmo plano. Quando morresse ninguém ia se importar. Deixaria uma carta? Para quem a carta? Não tinha amigos, não estava namorando, nem falava muito com a sua avó. Para quem uma carta? Para os professores? Eles iriam desviar seus planos.
O barulho da quadra foi se ausentando. A claridade foi amarelando até encontrar a escuridão. Tudo escurecera.
Quando ela acordou encontrou-se rodeada de pessoas. Demorou para reconhecer a sala onde estivera algumas vezes, a sala da diretora. Há dias não se alimentava direito e nem dormia. Desmaiara e foi socorrida por algumas pessoas que estavam na quadra.
Depois que todos se afastaram, a professora Sandra sentou-se ao seu lado. Acariciou-lhe os cabelos e a abraçou. Não disse palavras. Uma atitude diz mais que as palavras. A menina sentiu-se amada sabendo que a professora não era da sua genética, mas que preenchia a falta dos seus pais.
— Como é o seu nome? Sandra perguntou tendo ela no colo.
— Luiza, professora.
Sandra encheu os olhos de lágrimas e juntas choraram pela mesma dor que o tempo ajuntou ali. Tinha treze anos quando uma professora com o nome Luiza lhe salvara a vida. Depois que a salvou, permaneceu por perto, até ela encontrar uma razão para viver.

— Luiza, eu gosto muito desse nome.
 Sandra refletiu. Sentindo um passado que não passava.





                                      
... O tempo na parede , um coração sem lugar.Os ponteiros retornam , mas não são como eu.Eles esperam encontrar o doze.Eu espero encontrar a minha metade , extinguida num desastre de avião.

O TEMPO NA PAREDE.

Faltam os móveis. A casa ficará para trás, o quintal modificará, os muros virarão paredes, mas a rua será a mesma. As árvores crescerão, os postes serão trocados. O tempo dirá. A rua quando receber o asfalto será uma avenida dentro de mim. Por ali passarão as lembranças, as saudades, a vida. Dizem que quando as pessoas crescem sentem pesares. Eu carrego uma rua dentro de mim.

O céu, cinzento todas as manhãs. À tarde o neon, inconfundível. Tudo muda. Mesmo sem buscar um novo lugar. O sol nunca dorme. Os dias aqui são claros enquanto a noite passeia em outros lugares. Aqui parece amanhecer mais tarde. Mesmo que eu não perceba, o sol peleja com o nevoeiro.
Vejo as nuvens se desenhando, obedecendo ao sol.
— Mariah, deixa esse diário um pouco. Venha ver uma coisa!
— Espere. Falta uma frase... Mas... Que coisa?
— Venha ver.
— Tá bem, tô indo.
Os minutos avançam e a minha espera se desespera.
— Olha, você tá perdendo...
— Mas que insistência! Me deixa em paz. – Mariah respondeu se ajeitando e ajuntando as pernas. O diário a roubava de mim.

A minha poltrona é a número 12. Doze também é a rua que não sai de mim. Tenho doze anos e já são 12h00min. Juntando o meu nome com o dela, doze letras. Mariah e Antony. Sou nascido aos doze de dezembro, ela, vinte e um do mesmo mês. Há um instante na vida em que tudo fica exato? Perfeito pelo menos duas vezes ao dia? Não vou terminar o meu prato com doze garfadas. Poderia até ser assim, mas no restaurante em que me encontro há mais de quinze pessoas. Nem tudo é exato. Se fosse, que graça teria?

A brincadeira de esconde-esconde, ela se esconde junto a mim. Vejo nossas sombras unidas. A lua revela nossos desejos, tímidos.
— O que você queria que eu visse?
— Não importa mais.
— Ah! Importa, sim.
— Não sei não, hein?!?!
— Não faça essa cara, eu não gosto.

O ônibus pára. Um cara com feições trogloditas ocupa a poltrona do outro lado. Ele vira para guardar a sua bolsa no bagageiro acima. Percebo que há um número 12 na sua camiseta.
— Sim, jogo vôlei.
— Mas eu não perguntei.
— Mas ia perguntar.
— Sei não, hein...
— Então por que me encarou?
— Nada...
Encolhi na poltrona.
Doze.
Caminhamos pela estrada. Ela tem um diário e canetas coloridas. Com ambas as mãos os prende na altura dos seios. Mergulho num silêncio que é só meu. Ela fala compensando a falta de palavras. A sua voz não cobre o crepitar dos seus passos dissolvendo o cascalho.
— É aquela ali? – Disse apontando um ipê florido.
— Não.
— Falta muito?
— Alguns passos.
— Tá me deixando nervosa.
— Tô não. Você é nervosa sempre.
— Uh! Tô falando da ansiedade.
— Mas também é impaciente.
— Você que é impaciente... Não espera quando me demoro aos seus pedidos.

Meu pai conversa com o troglodita, mas apenas resmunga. Escuto um “sei”, e “runrum”. Meu pai é um músico. Não fala muito. Quando está ausente fica me ligando; quando presente, fica ausente e não liga.

— Amoras!
— Eu conheço amoras. – Ela diz. Falando mais com as mãos.
— Sei que conhece, mas eu quis dizer.
— Você fala como se eu não soubesse.
— Você nunca tá pronta...
— Pronta pra quê?
— Pras coisas que eu quero lhe mostrar.
— Tá vendo, já ficou irritado.
— Olha como você tá falando...
— Tudo bem. Desculpe. – Ela se afasta alguns passos e fica a ver as colinas. Os outros foram para outras árvores. Os pássaros, nossa companhia. Percebo o vento em seus cabelos. Eles se movem como a minha certeza de que não vou conseguir ler o livro escolhido por ela.

O ônibus pára novamente. Troglodita saúda o meu pai. Doze. Percebo quando descem os seus amigos. Frente a um ginásio. Ouço a sua voz ecoando em minha cabeça. “Sim, jogo vôlei”. Precisava dizer? Não pasmem. Contei mentalmente as doze letras.

— Por que ficamos com o pé de amoras?
— Saiu no sorteio. – Falo já esperando uma ofensa.
— Não gosto de amoreiras, mas percebo que só nós temos a árvore diferente.
Não havia observado. Lancei um olhar de fazendeiro observando o gado. O meu melhor amigo ficou com um dos pés de jambo, os demais se contentaram com as mangueiras.
Para pôr fim à guerra dos sexos, uma professora quis aproximar os meninos das meninas antes que houvesse o pior. Foram selecionados os brigões, doze. Seis casais. Cada menino teria que escolher uma árvore. As meninas escolheram os meninos. – Se essa tarefa fosse dos meninos? Homem não sabe escolher com o coração, mas com os olhos, disse a psicóloga batendo as mãos nos quadris. Depois de escolhida a primeira etapa, no sorteio, as meninas escolheriam um livro romântico para os meninos e os meninos teriam que escolher um que falasse de futebol. Valendo pontos e a permanência na escola, teríamos que sentar juntos embaixo de uma árvore, trocar ideias sobre o que fora lido e fazer um relatório.

Vejo a rodoviária. Chegamos. Meu pai alcança primeiro a guitarra. A mala logo a seguir. Disse para que eu cuidasse das minhas coisas. Com doze anos já com malas para cuidar. Meu pai precisa de mim. A minha tia Carla veio nos receber no portão. Abraçou-me e, com um beijo, disse que eu já estava um hominho. Fiquei feliz pelo “hominho”. Quando entramos lancei um olhar de adaptação por toda a casa. Meu olhar me fez bem. Teria aquela magnífica casa para morar e uma linda tia que gostava de mim. O meu pai não parava em casa, compromissos da banda. A minha mãe casou-se e o meu padrasto não me aceitava. Fui morar com o meu pai, que morava em lugar nenhum.

— Obrigado, Mariah. – Disse, avaliando o livro.
— Espero que goste. – Ela é linda, pensei. Qualquer coisa que viesse dela eu ia gostar.
— Espero que você goste desse aí também.
— Sim.
Jeito descontraído, um olhar que muda um sentimento e falar de quem está ansioso. Leio Mariah assim. Ela se encosta para ler. Os cabelos cobrem o seu rosto. No momento em que desejei tantas coisas, quis ser um desenhista para traçar todos os detalhes dela lendo um livro e recostada em uma árvore. Fotografia é muito urgente, uma câmera poderia ocultar detalhes que os meus olhos queriam levemente rabiscar.

Os três primeiros dias de aulas meu pai me deixou na escola. Voltava de Van.
Antes que o relógio marcasse meio-dia, vi a minha tia conversando com a vizinha. Relutei a ir com a vizinha para o colégio. Meu pai não estava na cidade e a minha tia não podia, habilitação vencida. A relutância durou até notar que a filha da vizinha seguia comigo para o colégio.
— Você é do grupo SM? – Disse sem me encarar nos olhos.
— Sim.
— Tá explicado.
A mãe dela conferiu os nossos cintos antes de fechar o portão.

Sou um homem parado frente a um relógio na parede. Parte de mim ultrapassa o 12, mas se move como os ponteiros. Do que valem as lembranças? Acho que para esconder o futuro. Esse mesmo relógio marcava 12 horas quando aconteceu o nosso primeiro beijo. Depois de cinco anos a casa ainda é a mesma por dentro; por fora, uma pintura nova.

Mariah é comissária de bordo e chega daqui a pouco no vôo das 12 horas. Enquanto a espero, relembro os nossos dias. Eu trabalho com vendas e estou aqui com a mãe dela. Estamos felizes, amanhã será o nosso casamento. A festa acontecerá na rua doze Nº 1212, casa dela. Há um relógio preso no alto do saguão no aeroporto. Na verdade há um relógio dentro de nós contando um tempo feliz. Pelo vidro da sala eu vejo... O avião pousando como um pássaro. Vejo ao meu lado pessoas se movendo... Vejo o relógio marcando 12 horas... Vejo, alguns segundos depois, pessoas como eu desesperadas ao ouvir uma explosão na pista. As chamas propagam como as minhas lágrimas. Dissolvem o que há na aeronave. Estou frente ao relógio procurando respostas. Será que ela não está em outro vôo? Bombeiros se revezam.
Frente ao relógio. Fecho os olhos e a vejo chegar, num avião que não chegou.


PRECISO APRENDER A FICAR COMIGO


            Preciso saber quando é hora de acordar. Preciso saber quando é hora de dormir. E no espaço que há entre esses dois verbos, preciso saber conviver comigo. Três verbos ardem no coração: preciso, saber e ficar. Então deduzo: preciso saber quando é hora de acordar e quando é hora de dormir. Nesse interstício simbolizado por uma letra “e” descubro que preciso saber ficar comigo. Nesse espaço há silêncios que eu desrespeito, há barulhos que eu desconheço. Ouço tantas coisas. É nessas tantas coisas que vejo meu coração elusivo aos desejos. Por precaução e bom senso, escolho guardar as coisas que são boas, mas que depois de um tempo ficam ruins. Por quê?  O tempo delas passa. Tudo se descamba ao nada amigo. Como as minhas indagações. Depois que encontro as respostas, vou à busca de novas compreensões, incompreendidas.

            Preciso saber interpretar os silêncios. Dentro do silêncio há um silêncio clamando barulhos. Dentro do barulho há uma balbúrdia invocando silêncio. Há um desencontro que se encontra sem rasura, e com mesuras, aprecia o contrário. Um viver que vive e vivendo se rende aos seus próprios sinais. Invoca o sim e o não. O sim nasceu para ser um sim, mas no caminho se questiona por não ter sido um não. O não nunca diz não quando as coisas são ao seu favor, mas pelos caminhos também deseja ser um sim. Pensando nas coisas que são inversas, negar um não é o mesmo que dizer um sim. Escolhemos as palavras para dizer, amigo, mas são as atitudes que falam às claras. São as coisas, meu amigo. São as coisas, mas que coisas? Essas que invadem nossos silêncios e por caminhos não imaginados levam às nossas pretensões. Quer saber? Antes que o tempo passe, preciso saber quando é hora de acordar. Preciso saber quando é hora de dormir. E nesse espaço que há entre os dois verbos, preciso aprender a permanecer comigo. Já distanciei demais nas estradas que dispersam a vida.

            Preciso saber quando é hora de acordar, pois quando chegar o outro momento terei certeza de um sono bom. Agora falo, meu amigo, de um despertar físico, de um abrir de olhos, de um ver que me induz às coisas certas. Aqui eu sei que uso a repetição dos verbos, e é repetindo eles que me despeço. Preciso, saber, acordar. Preciso, saber, dormir. Preciso de tantas coisas, mas os dias correm e são como as águas de um rio. As coisas são muitas. Pensando nos dias que não esperam minhas esperas, na indecisão me escracho. Sofrem os meus desejos. Sofrem por não saber desejar uma só coisa. É nessa altura que misturo o sim ao não, pois, de tanto precisar, esqueci de precisar ficar comigo. No espaço que há entre dois verbos, preciso aprender para me ensinar a conviver comigo.

POR QUE TEMOS UM NOME?


A igreja estava quase cheia. A expectativa dos presentes, como de costume.

— Qual é nome do garotão? O padre indagou apontando um jarro com água em direção à cabeça do menino nos braços de uma jovem mulher.
O homem do lado tentou responder, deu branco. A mulher com a criança no colo insinuou uma palavra, mas se escondeu na insegurança. Era um batismo, não uma competição do soletrando.

— IVAGGNNOR! Adiantou-se a mãe dizendo, percebendo o embaraço dos envolvidos. – IVAGGNNOR! Disse com o orgulho de quem cria uma coisa nova. Nem Thomas Edison quando inventou o Fonógrafo teve a mesma expressão.
O padre recolheu a mão que ameaçava despejar a água quando ouviu. Suspirou. Estava quase acostumando com a nova geração. Ele conheceu a geração dos “Josés” e dos “Joões.” Nomes têm momentos.  Os dias de hoje, seria Neymar? A mídia não registra nem batiza, mas influencia na criatividade. O sacerdote se guardou num silêncio quase budista. A igreja entendeu. Gosto não se discute, nem se interfere.
— O nome? Disse depois de voltar a si.
— Sim. É IVAGGNNOR. – Respirou. – É: I... V... A... dois “Gês mudos,” dois enes, um ô e um erre no final. Soletrou. Explicou as letras e comentou. Queria um nome diferente para o filho.
O pai cerrou os olhos. Coçou a orelha direita, quis se esconder, mas amava a esposa. Estava feliz por ser pai, suportou a vergonha.
Juramar, o pai, pensou no outro dia. Um ontem cheio de invariáveis. Vinha de uma grande família de nomes estranhos. Tinha uma resposta convincente quando questionado: “Coisas do meu Pai!” Entristeceu quando lembrou o nome dos seus irmãos: Jumairzo, Jumerzildo, Jumirnaldo e sua irmã, Jumaríndia. Todos deram um pitaco para o nome do seu filho. “Ta difícil! Ontem o cartório que recusou esse nome, agora também o padre?” Questionou em sua alma.
O padre entendeu a situação do pai e, como estava acostumado com o ofício, entornou o jarro que estava em suas mãos. A criança começou a chorar e esperneando bateu com o pequeno pé no jarro. Acho que não recusando a água, mas o nome. Criança não pensa, mas se pudesse escolher o próprio nome, diminuiria o Bullying na escola quando crescido. A água espalhou molhando os pés do padre. A mãe envergonhou-se pela água derramada e pela incompreensão de um nome tão bonito. “Gosto é gosto, e para mim, opinião é uma questão de opinião”, disse a mãe num sussurro ameaçador à madrinha, que sorriu concordando. Para não haver transtorno, decidiu chamar o afilhado de Vaguinho.
— Chora não, Vaguinho! – Disse a madrinha erguendo o menino no alto.
O pai ouviu. O pai gostou. O padre ouviu e gostou. A mãe, não. Mas a criança parou de chorar. Coincidência? Não é coisa boa ser um humano. Tudo é escolhido por outros. Um homem escolhe uma mulher ou uma mulher escolhe um homem. Ambos escolhem um momento, que escolhem um lugar. Como a paixão nos dias de hoje brota das cinturas, uma criança que não escolhe nada, nasce depois de um tempo. O seu nome? É escolhido por alguém. A comida, a cama, as roupas, as diversões, os brinquedos? A escola, as matérias, os colegas? Escolhidos por alguém.
Posso assistir a um filme que não é escolhido por alguém? Alguém escolheu fazer um filme e escolheu o tempo para passar esse filme. Depois que nos tornamos adultos ainda vêm os políticos e escolhem por nós as leis que nos...
O batismo fora interrompido por alguns instantes. O Menino era Ivaggnnor, mas ganhara um bom apelido: Vaguinho. Parecia nome de jogador de futebol ou nome de cantor de pagode. Parecia o nome mais certo para o momento.

Volta à cerimônia.

— Por que esse nome?
— Achei bonito.
— Você gosta do seu filho?
— Padre, eu sou a mãe.
— Eu sei.

Silêncio. A cerimônia ganhou ares estranhos.

— Como é o seu nome?
— Jessica.
— Penso nas crianças de hoje. – O padre seguiu com a Homilia. – Os pais não se preocupam com os nomes dos filhos. Acho que é porque também não pensam no futuro deles. Assim como têm criatividade em ajuntar letras para compor um nome, também são criativos para fugir das responsabilidades.
O padre disse. Ele e somente ele podia dizer. O nome era estranho, mas se não batizasse o garoto, o quê iriam dizer do padre Astrogésilo Freitas?  Padre Freitas estava ali para rezar a missa e fazer batismos, não para questionar os nomes. 



O HOMEM DE KRIPTONITA

Ele não era de Marte, também não era da Lua, falando, parecia homem que veio de Kriptonita. As pessoas não se moviam. Os ventos paravam para não cobrir sua fala com ruídos. Acho que até os ruídos se roíam de medo com receio de ser repreendidos. O instante da fala era do seu domínio. As horas que não tinha nada com isso, continuavam marchando e de segundo em segundo alongava o tempo. O despreparo de quem é absoluto é um desespero para quem escuta coisas coisadas. Há alegria em quem dita para o outro, deveres.
Sempre estamos ocupando o tempo do outro. Quando alguma pessoa não toma o nosso tempo, consumimos o tempo de alguém. Nos Chats, gastamos longos minutos conversando com alguém cujo peso da presença física não resistiria mais que alguns minutos. 
Ali havia pessoas que cruzaram fronteiras para ver um homem que falava como um ser raro, mas que não atravessariam a rua para ouvir um homem que veio da terra. O homem que veio da terra, humano, conhecia a dor de um viver diário.

Os instantes ali eram de um tempo buscado, então, permitido. Se repito a palavra “tempo” é porque as coisas coisadas  dizem respeito à preparação. Coisas coisadas para mim quer dizer: você fala de um assunto velho usando uma inspiração nova, mas para quem já viu e ouviu torna-se uma coisa coisada.
Sem querer vou seguindo o tudo e nesse tudo rendo-me ao tempo. Ele joga com as minhas emoções. As coisas que eu falo realmente são a minha verdade? Às vezes falamos tanto, mas nem sempre cremos em dez por cento dessas falas. Há o que vem pelo ouvir e, se não ouço com o coração certo, tendo a divagar, pois o ver transporta o pensar. Talvez eu busque sabedoria da Lua, ou tente encontrar comunhão em Marte. Talvez eu coloque os pés na terra, não como um homem que veio de Kriptonita, mas como varão que conhece a sua sina: vinte e quatro horas e uma porção de sentimentos, que sujeitos ao lugar, se afloram como jardins que se rega todo dia. Se não posso escolher meus sentimentos quero conviver com pessoas que não escavam a ira.
O homem foi assediado depois que terminou. Depois dos aplausos ele caminhou. Depois que caminhou, sentou-se como homem que veio de Kriptonita ao lado de um homem que veio da terra. Esse não tinha depois. Era homem de agora.
Cabelos brancos e fala de quem aprendeu com a vida, o homem que era da terra cumprimentou o homem que parecia vindo de Kriptonita. Por pouco tempo, pois uma multidão dos que não enxergam homem da terra veio ter com ele. Cabelos brancos entendia aquele momento. Do homem e do povo.
O homem da terra observava a multidão enquanto escutava seus pensamentos. Indagações... Questionamentos... Pessoas... O tempo... E, o homem que não falava como homem, mas como varão que veio de Kriptonita.
Depois que o tempo se foi, foram também as pessoas. Ficaram dentro daquele salão dois homens. A sofisticação e a simplicidade. O ego fitou a humildade com o orgulho de quem sabe que é preciso ser humilde para reconhecer o ego. Depois dos aplausos sempre chega o vazio de se estar sozinho. Para o homem da terra havia paz. A sabedoria reina depois do tempo para quem aprende nos caminhos como são os passos. Voar na euforia é fácil, difícil é pôr os pés na terra e encarar a si mesmo. Voltar para si mesmo exige mais que voltar, tem de se estar disposto a quebrar o orgulho.

Não sei se os Kriptonianos possuem egos e se, em defesa desse sentimento, mudam a verdade. Não sei nem se eles compreendem o amor.
De perto ele não amava ninguém além de si mesmo. De longe, era alguém que impunha seus encantos. Caetano Veloso já afirmara: “De perto ninguém é normal”. Como homem que tinha traços de Kriptonita, sua missão era mais importante do que a vida, do que a natureza... Mais até que os humanos. Não era alto e nem baixo. Tinha o nariz um pouco curvado, se vestia bem e usava sapatos internacionais. O rosto? Sem barbas, a pele bem tratada e sobrancelhas feitas em salão. Havia uma pequena cicatriz logo abaixo do nariz que se escondia ao dar lugar a um sorriso. Um riso de quem ri com dor se confundia com o olhar de quem se esqueceu de ser feliz.
O homem da terra compreendeu o sentido de algumas palavras publicadas na internet: Não é preciso ser, basta parecer”. Ele aprendeu que sendo é melhor que parecer, ainda que não tenha uma multidão sob os seus pés.
O homem que era da terra, mas que falava como homem que veio de Kriptonita, também tinha sentimentos, e vivia como todos os homens, à mercê da dor de ser Humano.


PENSAMENTOS ROBÓTICOS

            Quase não faz sentido fora do seu tempo o Sete do nove. Outros dias são outros dias. O orgulho não anseia mais bater no peito ao cantar a mais importante canção de uma nação. Costume é costume, mas desacostuma por uma coisa nova. Coisa nova amedronta o acostumado. Medo da novidade.
            A novidade veio para apagar a beleza dos instantes que só fazem sentido se o instante promover novidades.
            O tempo não surpreende, e sim as coisas novas que chegam pela fusão do tempo. Não sei nada do “daqui a pouco”. Sei que, daqui a pouco, vou ter um pouco de novidade.
O que antes era belo, hoje não me toca mais, mesmo sem perder a beleza. E a gente se acostuma em levantar, a passar pelo dia, a esperar a noite... Acostuma-se com as falas, com as salas, com os amigos, com os sentidos... A gente se acostuma com o próprio costume. O costume esconde o viver.
            Dentro do ônibus, repetindo os dias, uma mulher repete também os gestos. O veículo pára frente um edifício de vidro. Depois que movimenta rumo à próxima parada, ela se levanta e procura dentro da sua bolsa algo demorado para ser achado. Encontra o seu batom. Retira a tampa, observa no espelho que é a própria tampa, morde os lábios várias vezes, aplica uma nova camada da cor vermelha, que para mim não realça diferença, mas ela insiste no detalhe. O tempo de uma nova parada é o tempo da sua preparação para descer.
            O motorista buzinou várias vezes antes de dar um grito ao passar pelo seu colega de trabalho. O mesmo lugar, a mesma conversa, o mesmo jeito de sorrir das mesmas piadas.
Um guarda de trânsito no meio da rua fez sinais indicando um desvio. Algo novo no caminho, um caminho novo. O alegre motorista de algumas quadras atrás se descambou de ira. Pensei na força que há em virar a página de um livro. Há uma força oculta, tênue, mas que exige atitude de chegar à próxima lauda. Há uma escolha. Podemos permanecer na página ou encontrar coisas novas na seguinte. Há humanos que passa da paz à ira como um virar de páginas.
            O motorista praguejou.
Seguindo os modos do condutor, alguns passageiros praguejaram também. Outros ruborizaram ouvindo os palavrões. Algumas pessoas têm a boca santa até encontrar um momento certo para expor as satanices. Para os humanos, a mesma força que carrega o céu e o inferno faz das suas bocas um cartão postal da sua moderação. Um desfile de Sete de setembro obrigou o motorista tomar outra via. A vida nos faz tomar direções diferentes quase o tempo inteiro e nem precisamos de um guarda de trânsito para mudar os caminhos, basta atrasar um compromisso para as coisas mudarem de rumo. As ocorrências da vida possuem duas linhas no tempo. Quando apressamos um sonho, perdemos a excelência; se demoramos, passamos do tempo. Uma vez cheguei atrasado, voltei para casa e perdi um dia de trabalho.
            Observei parte do desfile. A mesma rua, o mesmo som da fanfarra, o mesmo marchar de alunos. Os alunos eram diferentes, mas a tradição era mesma. O mesmo professor conduzia a banda. Acho que a mesma plateia assistia o desfile, que era novo no tempo, mas como as minhas reminiscências, já cruzaram os dias. A caixa de onde antes eu tirava um som, no momento tirava a paz dos meus ouvidos.

            Reparei no meu cachorro, que sorria latindo quando entrei no quintal. Vi movimentos novos. Os improvisos de um cão são sempre os mesmos, mas são lindos porque são movimentos de espera. Ele alegra um chegar que chega quase sempre da mesma forma, cansado.
            Observo o meu cachorro. Enquanto o abraço, penso nas coisas que vi durante o dia. No percurso do meu trabalho vi o que vi na ida, e na volta reflito nas coisas que passaram por mim. Coisas passam por nós e, no vai e vem de um ser, habitam seus pensamentos. O motorista, a mulher, o desfile... Foram as reflexões que comigo ficaram. Os meus dias são de rotina, mas não precisam ser. Meus pensamentos, robóticos, estão acostumados a ter costumes. Meus hábitos se habituaram a habituar. Pensando nas coisas que mudam, mas não perdem a sua essência, cogito dias sem rotina. Entrego-me numa emoção que se renova no sorriso de um cachorro. Esse sentimento afasta de mim os pensamentos robóticos que escondem de mim a grandeza da pátria. Celebrada para não ser esquecida, no Sete do Nove.


O MENINO QUE NÃO AGRADAVA.
                                  “Só sei que nada sei. - Sócrates”.

A simples raiva virou um choro. Não fora ele. Eles estavam errados. A chuva fina alongava o dia. Carlito esticou-se no chão, nada para latir. Cafu dormia de forma desleixada no sofá. Enquanto a sua mãe não chegava, tinha como companheiros um labrador e um gato da raça ragdoll. Sem nada para fazer, sentou-se no chão do seu quarto, tendo nas mãos uma revista e, no colo, Carlito. Tio Patinhas espalhado por todo o quarto. Na parede, um pôster do Rocky Balboa intensificava-lhe os sonhos. Por alguns minutos manteve os olhos fixos na porta do armário. A frase copiada no cartaz, mas a mensagem, escrita no coração.
“A vida é como fazer um filme, você faz comédia, as pessoas vêem terror”.
A chuva cessou. Junior olhou pela janela sabendo que tinha chegado a hora. Todos os sábados atravessava a rua com calçadas quebradas. Caminhava longos minutos em meio aos sobrados com desídias pinturas, chegava à rua dos camelôs e tomava o ônibus na rua das casas galantes. Em outras ocasiões, seguia até a praça, sentava ao pé da estátua e se parecia com ela. Às vezes a observava. O homem retratado ali ajudou tanta gente, mas para ser lembrado precisou que alguém fizesse uma escultura. Uma estátua na praça. A história da cidade se calava no coração dos seus moradores, que de tanto ver o monumento, não reconheciam a história.
O teatro estava lotado. Os atores realmente eram muito engraçados.
SORRIAM ENQUANTO FAÇO GRAÇA”!
Dizia o nome da peça, mas ao final, os atores a completavam com um “pelo amor de Deus”.  
Uma luz acesa no andar de cima? Mãe acordada. As luzes difusas, os carros antigos e os telefones de rua davam vazão a um só pensamento: “O tempo não andou nesse lugar”. Carlito pareceu mais sorrir que latir ao recebê-lo no portão com grades envelhecidas. Pela luz da rua notou que Cafu ainda ocupava o sofá quando abriu a porta.
— Quando você vai arrumar um trabalho decente, menino? – Gritou a mãe lá do quarto.
— Esse é decente, eu gosto. – Disse elevando o gato ao colo.  Cafu pedia colo quando queria comida. O ritual criado pelo bichano favorecia a compreensão do rapaz.
— Você precisa de dinheiro?
— Mãe, você sabe que gosto de trabalhar.
— Quando você se formar sabe que a empresa será sua...
— Eu sei mãe, mas até lá, quero trabalhar.
“Filhos não crescem”, dizia dona Gal sempre depois de uma conversa. Uma mãe crítica, que não perdia de vista o seu “meio homem, meio jovem”. Nos últimos dias Junior andava estranho, impaciente, asqueroso. Já se acostumara a não vê-lo com amigos. Perguntava-se por que, pois, era um adolescente disposto a ajudar qualquer um. Nas horas vagas se ocupava dos colegas de sala para ensinar matérias tipo física, química e matemática. A empresa referida por dona Gal era uma simples ótica no centro da cidade. Dispunha de três funcionárias e um técnico contratado como free lancer. Uma revista local a elegeu como a empresária mais bela do ano, título que ela, aos trinta e cinco anos, sustenta com o orgulho e a confiança de um jogador de futebol.   
Ficaram observando quando ele passou sem cumprimentar as pessoas. Rauane foi a que mais sentiu. Diante dos amigos, ela precisava disfarçar. Junior, apesar de inteligente e cavalheiro, não era o tipo de pessoa que a encantava. Ao passar por ela notou quem lhe segurava a mão. No banheiro, enquanto enfrentava a sua imagem, refletiu sobre um conto do Machado de Assis. “Queda que as mulheres têm para os tolos”. Machado tenta explicar algo que os filósofos estudaram e que ele presenciava naquele momento.
A banda da escola começara a tocar. O baixista alheio não perdia o tempo da música. O hábito nos permite certas habilidades, fazer algo enquanto os pensamentos vagueiam.  Luana sentou ao lado do rapaz quando o evento terminou. Ela sempre fazia aquilo. O irmão estava precisando de ajuda. Ela não suportava a mãe dele, mas amava o pai que tinham.
— Ei! – Sacudiu-lhe os ombros. – Você não precisa ficar assim... Existem outras.
            — Tá tudo bem. Vai passar. – Sorriu.
— Olha, no fim de semana haverá um show de Stand Up... Você poderia ir comigo... Tá precisando sorrir um pouco e o comediante é dos melhores... Já se apresentou na TV... Sabia?
— Eu sei.
— Sei que sabe, mas quero que se alegre um pouco – fez uma pausa enquanto ajeitou-lhe a camiseta sobre os ombros – anda muito triste ultimamente, viu? – Disse, tocando-lhe o rosto com o dedo indicador.
Ela tinha razão. Os fatos, as lembranças diziam isso. Ela não estava sabendo. Não era de velar o passado, mas esse o incomodava e cenas quase recentes impingiam a sua bondade. Depois que a irmã se afastou, deixou que os seus pensamentos visitassem momentos dentro dele. Por que as pessoas se cansam umas das outras? Averiguou. Tendo como principio os acontecimentos atuais. Como a brancura de uma luminária um fato acendeu-lhe as lembranças...
— Acho que já vi isso! – Disse em meio a um sorriso instintivo. Diante dos seus olhos uma menina chantageava a mãe. Correu os olhos pelo balcão de vidro, lá estava o motivo. A mãe envergonhada diante da vendedora que, radiante, explicava as funções de um mega celular. Olhou para a sua amiga. Na escola, era tão doce.
— Por que você faz isso? – Disse segurando a mão dela.
— Eu preciso.
— Mas precisa de um desses?
A menina espantou-se. Ele era o seu melhor amigo, mas não podia interferir em suas vontades. Por ternura, aceitou responder.
— Eu vou levar esse. – Disse a mãe à vendedora. Mais para que ele ouvisse.
— Sim, eu gostei dele. Tem todas as funções. – A menina respondeu com um meio sorriso.
— Sim. Ele é muito bom mesmo, mas, você precisa de todas essas funções?
— Digamos que não vou usar todas, mas se um dia eu precisar...
— Quanto tempo dura esse “se um dia”?
— Por que essa pergunta?
— É porque quero aprender.
— Não sei. Nunca pensei nisso.
— Então responda à primeira pergunta. Eu realmente quero entender porque as pessoas cedem às necessidades. A necessidade escraviza as pessoas. Você realmente precisa desse?
— Eu não quero mais este. – Disse, erguendo o celular quase antigo. Ele sabia o tempo. Há três meses entrara com ela e a mãe numa loja. Ela se encantara com aquele.
— Nem tudo que queremos é bom.
— Sim, eu sei disso!
— Desculpe, eu... Só quero entender.
A menina andou pela loja observando as novidades, mas não as via. As perguntas dobravam seus sentimentos. Precisava realmente de algo caríssimo?
A cicatriz no supercílio esquerdo. O espelho o fez voltar. Num tempo ainda mais distante. Num tempo em que os seus três irmãos não tinham respostas para todas as suas perguntas. Desprovidos do conhecimento, agrediam. As perguntas têm o poder de despir as pessoas. Para não ficarem nuas, atacam. Lavou o rosto. Lembranças bem lembradas não escurecem o presente. Sorriu. Ainda conseguia pensar. Aceitou a situação e compreendeu que um simples aparelho celular pode esconder uma pessoa dentro de si mesma ou revelar seu caráter.
— Você pergunta demais... E pelo que sei, você não é tão bobo assim. – Rajii respirou antes de dizer, e sem sotaque. – Olha só... Você perguntou a minha opinião... E... como amigo, na boa, cara, sem ofensa, você ajuda todo mundo – fez uma pausa – não acha que tá na hora de você ajudar a si mesmo? Olha só o que dizem de você!
— Você acha que ela mudou depois daquele dia na loja?
— Você com suas perguntas a fez desistir de um mega celular. E ainda mais, fez a mãe dela parecer que não tinha condições de comprá-lo.
— Que conceito é esse, cara?! De onde você tira essas ideias?
— Oh cabeção, há quanto tempo eu ando com você? Às vezes falo muito, mas eu penso. E também nós três sabíamos que a mãe não tinha condições de dar à filha um aparelho daquele.
— Três?!
— Uh! Eu, você... A Rauane...
Junior começou a sorrir. Não de alegria, mas da luz que clareava um passado sombrio. Se pudesse mudar o mundo, mudaria o seu próprio mundo.
Rajii sentou ao lado dele enquanto o professor falava. Fazia sentido, mas o seu amigo abusava nas indagações. Junior tinha noção do rumo que a sua vida tomara. Vinte e quatro horas é muito tempo para um dia. A bíblia não menciona o tempo da dor, mas Jó aprendeu isso[1]. Ele estava aprendendo também. No final somos o resultado de um processo. Refletiu sem muita convicção no que pensava. Um dia você acorda e percebe que o mundo não mudou, as pessoas modificaram-se.
— Não é porque no passado os filósofos questionavam tudo que a minha geração se dá ao luxo de se sentirem sábios apenas com as respostas. Por que temos mais respostas que perguntas? – Concluiu o professor com desdém.
— Já encontraram os culpados? – Junior quis saber. Rajii apenas meneou a cabeça.
— Fizeram ameaças.
— Eles sabem que não foi você quem os denunciou.
— Mas denunciaram os caras e eles estão bufando de raiva.
— Tem quase quinhentos alunos nessa escola. Por que pensam que foi você quem falou? Pode ser um desses que compram drogas deles, nunca se sabe...
O Espetáculo ia acontecer à noite. Luana ligava com intervalos. Precisava saber se o irmão ia estar com ela no show. Junior estava com a cabeça em outra coisa. Felipe o ameaçava por ter sido denunciado e ainda para afastá-lo da Rauane. Alguém denunciara o grupo dele alegando tráfico de drogas dentro do colégio. Junior, por preferir sempre a justiça, foi acusado por injustiça. “É muito mais fácil não acreditar num justo que duvidar dos injustos”, cogitava em seu coração, lembrando que sempre fora tratado assim, como um impostor.
No momento em que o telefone tocou novamente, uma notícia explodiu na TV.
— Oi! – Pausa – espere um pouco... Hein?! – Silêncio do outro lado da linha. – Eu sei! Tô vendo aqui. Será ele mesmo? Ok, vou correndo lá pra ver... Sim, eu vou até lá... Sim... Um beijo! 
Junior sentou frente à TV. Duas emoções invadiram-lhe a alma. Primeiro, descobriram quem denunciou a gangue do Felipe. Esse sentimento lhe deu contentamento. Segundo, Rajii o seu amigo, fora preso em flagrante traficando drogas dentro da escola. Esse sentimento lhe trouxe pesar. Nunca se sabe quem realmente está conosco. Logo ele que se colocava como o senhor do bem. Rajii, em busca de território, acusou a gangue do Felipe. Rauane, revoltada vendo o namorado indo preso, denunciou aquele que a jogou contra o seu melhor amigo. Rajii era o maior responsável por causar intrigas entre as pessoas. Junior, encostado numa árvore, observou o seu amigo, adolescente como ele, sendo preso. Rajii atiçava o descontentamento alegando que Junior perguntava demais. Ele tinha certa razão, mas sobre as perguntas, refletiu numa frase que aprendeu. Retirou da mochila um bloco de papel e anotou:
“Aquele que perguntava, perguntava por que dizia: Só sei que nada sei.”

Enquanto caminhava rumo ao show, Junior observava que as pessoas aguardavam eufóricas o momento do espetáculo. Os seus inimigos estavam lá, os raros amigos também. Pensando, encontrou respostas para as suas indagações. A bíblia não diz, mas quando Pedro caminhou sobre as águas[2], deixou dentro do barco três tipos de pessoas: as que aprovaram a sua atitude, as que a reprovaram e as que não tomaram partido: essas jogam conforme os resultados.
A plateia explodiu em aplausos quando ouviu:
SORRIAM ENQUANTO FAÇO GRAÇA... PELO AMOR DE DEUS”!
O comediante sentou-se feliz diante do espelho, certo de que fazia um grande trabalho. Luana sentou-se ao lado dele. Encantada, observava a retirada das máscaras.
— Por que não disse que era você?
— Era o meu segredo.
— Por isso recusava a vir comigo?
— Você queria me ver sorrir, mas como sorrir se sou o comediante?
Luana conheceu ali o seu irmão caçula. Podia odiar a mulher que roubou o seu pai, mas amava o irmão que tinha.
— Estão aí os que te odeiam. – Disse, apontando em sentido à plateia.
— É, eu vi.
— Quando souberem quem é a pessoa que eles aplaudem...
— Não se preocupe, os homens tendem a amar as máscaras.   
Sorriram.


[1] Jó-1,1
[2] Mt 14,22


DIAZANDO

            Tem dias que os dias se perdem, diazando. Fica vazio, fica cheio, e monótono, fica estranho. O time não ganha, a TV não agrada e a paciência? A paciência procura ter paciência para aguentar...
            Notícias de políticos, políticos nas notícias. Som que parece música, música que parece som. Gente que fala a verdade, gente que de verdade não fala. Verdades que não interessam, pois só pertencem a quem as diz. Pessoas que não amam a pátria e, cá para mim, pessoas que a pátria não ama.
Somos iguais no currículo da vida. Nascemos para vinte e quatro horas.
Não culpo os dias, nem a sua extensão. Ao meu gosto ou não, eles seguem diazando. Passam por mim como passam os carros... As pessoas... As dores... Mas ficam também como ficam as pessoas, as dores, as lutas e as circunstâncias.
Foram estabelecidas vinte e quatro horas para viver. Somos a soma do tempo. O meu coração é depósito dos meus olhos. Onde deito o meu olhar?
No meu time que não ganha?
Nas notícias de políticos? Nos políticos nas notícias?
Nos cantores que parecem cantar, nos cantores que cantam, mas não parece?
Na arte que perdeu a arte, na arte que virou um corpo?
Na arte que é arte, mas que se esconde nos templos de burguês?

Enquanto os dias vão diazando, eu quero a essência da beleza do impressionismo de Monet. As cores da vida impressas nos sorrisos e a sinceridade ética impressionando o viver. Meus sentimentos, depósito dos meus ouvidos, ponderar me fazem.
O quê invoca o meu ouvir?
Onde descanso o meu sentir?
Na música que parece som?
No som que parece música?
No que dizem que é bom, no que é bom, mas não dizem?
Nos vendavais da religião, na religião de vendavais?
Na ruptura, na estrutura, na leitura, nas várias faces da lei?

O que dirão os que não ouviram seus pais?
Os sonhos já não sonham mais?
Os dias que amanheceram, não amanhecem mais?

Tem dias que os dias são normais, diazando. O estranho sou eu questionando. Passo por mim passeando. As coisas estão fora do lugar, não aquelas que funcionam no corpo, mas as que os olhos e os ouvidos insistem em depositar.
Pessoas sem consciência fazem o que pensam sem pensar.
Pensam que pensam, mas não pensam no pensar. Alguém já disse: “quando todos pensam iguais é sinal que ninguém está pensando”.
A TV insiste em mudar meu pensar. Se fico muito perto, penso como eles que insistem em dizer: Esse artista é legal, diz o que pensa. Pensou o quê? Diante de quem não tem conteúdo a culpa é sempre de quem não pensa nada e se satisfaz com minúcias.
Quando pensarem, simplesmente pensem: eu existo.

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          UMA QUESTÃO DE ELEGÂNCIA

A música do Roberto Carlos tocava no rádio de um dos carros parados frente à sorveteria em que estávamos. “Amanhã de manhã, vou pedir um café pra nós dois”. Tomávamos sorvetes, outros, cerveja. Antes, a canção “Eu e Ela” ganhara dimensões em nossos corações, mesmo não concordando com os dizeres: “Coisas lindas são faladas na madrugada”. – Na hora do meu sono não consigo dizer nada. Nem sonhando. Coisas bonitas são ditas na hora certa, agora, se for a Paula Fernandes, pode ser de madrugada, eu acordo.
Mara estava linda em cima dos saltos, mas confessara, aqueles sapatos lhe faziam bolhas nos calcanhares. A estética vale mais que o conforto? Penso que sim. Pensando por elas. Uma amiga minha economizou três meses para comprar um vestido que para mim não valia quinze dias, mas gosto é opinião e ter opinião é uma questão de opinião. No meio de tantos vestidos que cobririam a pele, escolheu um que não lhe guardava o corpo. Queria arrasar na festa. A natureza é feminina, mas desconhece a estética para propor o conforto. No dia em que a minha amiga usou o vestido, o tempo mudou. Tremendo, ela suportou o frio. Negou-se a usar um casaco, pois a jaqueta era feia, o vestido era lindo e ela estava elegante.
Mara estava elegante, mas os sapatos não pensavam assim – se é que os sapatos pensam, pois se pensassem, seriam inimigos mortais no dia em que não quisessem sair.
            Os cabelos soltos, compridos, negros. Calça justa e de tão justa parecia que o corpo escondia a calça e não a calça o corpo. A blusa com gola em “v” era normal.
— Amanhã de manhã, você vai pedir um café pra nós dois?!! – Ela disse sorrindo. A conversa voltou para a canção que ganhou pauta de filosofia.
— Posso pedir.
Falei. Mais querendo ser romântico que elegante. É uma estética. Você diz que me ama e eu vou responder da mesma forma para o instante ficar bonito. O conforto é verdadeiro. Pensei no quanto é elegante convidar alguém para tomar um café. Penso também como é deselegante convidar alguém para conhecer o apartamento. O café é um grão que se torna pó, que vira líquido. Depois de fervido se torna elegante. Todo mundo convida ou já convidou alguém para tomar um café.
— Acho cafona essa coisa de convidar uma mulher para um cafezinho...
Mara disse sem rodeios.
— Eu acho elegante. – Respondi convicto, pensando na teoria do professor Edilson Ortiz. Contou-me certa feita que, no intervalo de um curso, notou que a sua colega – também adepta à ideia de que é cafonice convidar alguém para um cafezinho – aguardava o pessoal para os comes e bebes. Ele, certo da sua teoria, usou a prática para convencer a moça, que não mudava de opinião. Enquanto ela esperava, ele lhe apresentou dentro de uma bacia outro fruto da terra, uma banana.  A moça espantou-se. Observou o gesto sem entender. Depois de esboçar um embaraçado sorriso, indagou:
— “O que é isso”?!
 Ele explicou:
— Já vi muita gente convidar alguém para tomar um café, mas nunca vi ninguém convidar outro pra comer uma banana.
A moça mudou de expressão e aderiu-se a elegância de um cafezinho.
Depois de ouvir, Mara lançou-me um olhar demorado.
— Amanhã de manhã, vou fazer um café pra nós dois...
Sorri.
— Que tal à tarde?
— Pode ser. Um convite para um cafezinho é elegante a qualquer momento.




CADEIRA DE BALANÇO.

— Eu nem sei qual é a canção que toco agora. – Pausa. – Vejo os ponteiros do relógio andando em círculos... – Disse o menino já impaciente ao pai.
— Ei! Deixa os ponteiros do relógio fazerem o seu trabalho e preste atenção na música... Mas o quê tem a ver os ponteiros com a música?! – Gilson berrou lá da varanda.
— Pai, você pediu pra contar o tempo...
— Sim, mas o tempo da música.
Sávio voltou a concentrar no teclado. As novidades à mercê de alguns botões. Acionou um. Jingle Bells encheu a sala.
— Eu não pedi pra você estudar? Por que tá brincando?
— ... E... um ... E dois. E um... E dois... E...
— Conte mentalmente o tempo, eu não preciso ouvir!
Silêncio.
— Ei! Por que não está tocando?!
— Você disse que não quer ouvir...
— Não quero ouvir você contando o tempo. E deixa de fazer gracinhas e estude... Use a mão esquerda também!
Sávio enrubesceu. Há três formas de aprender músicas, pela própria vontade, pela vontade dos pais e pelo status. Pensou o garoto. Mamãe canta porque gosta de música, papai toca guitarra por status e eu? Pela vontade deles.
Quando o sol adormecia, observava os pais sentados na varanda fazendo planos. Ele estava acostumado a fazer planos. Não era como os planos de um adulto. Tudo o que queria era ser selecionado numa peneira, ser um grande jogador de futebol, dar entrevistas, discurso rápido. E se tivesse que contar o tempo, que seria esse o tempo do jogo começar. Um dia para ser bom tem de ser planejado. Da varanda observava os pássaros oferecendo rasantes. Pássaros não fazem planos. Todos os dias sabem que precisam de comida, e se apenas pensassem, não se alimentavam. Às vezes voava como eles e, de tanto pensar, não pensava nada. Gilson entregou-lhe alguns CDs e disse para ouvi-los.
— Pai, hoje eu não posso, tenho que fazer um teste. – Sávio disse, falando com os olhos e com as mãos.
— Deixa o menino se divertir, homem de Deus. – Pausa. – Quando ele se interessar pela música, vai nos encher de orgulho. Não é, filho? – Disse a mãe, observando o teclado e a cadência harmônica que o menino estudava. – Eu andei observando, Gilson, o tempo na música é contado sempre em busca do acorde que ainda não foi feito ou da nota que ainda vai soar e, mesmo que eu não veja, há movimentos dentro da música, ouvindo-os eu os sinto, sentindo-os eu posso compreendê-los e é justamente isso que faz o encanto. Há um tempo para todas as coisas, não é, querido? – Ela disse, estendendo as mãos para o filho.
Sávio respondeu gesticulando com os ombros.
O dia acordou cinzento. Gilson sentou na cadeira dos planos e se dispôs a enfrentar o domingo. Sávio tinha onze anos quando dera o nome à cadeira. A mãe gostou, pois, quando sentava ali as suas indagações ganhavam respostas. Dois dos seus planos mais importantes tiveram início ali e só depois foram apresentados na única igreja do bairro. Agora o salão da igreja tinha curso de costura e de pintura, mas não tinha ninguém para costurar nem pintar. Não basta realizar os planos, dá trabalho mantê-los. Mas isso cabia ao pastor resolver. Ela havia feito o mais difícil, pensar.
Ela sentou na cadeira dos planos com o orgulho de quem queria pensar em inovação. O estilo de vida da sua cunhada Margarida tomou o restante do dia, dos seus planos e dos seus afazeres. No final do dia pensamos mais no que fizeram e pouco no que fizemos. A sociedade nos ensina isso, afinal, vemos notícias para saber de quem? Da cadeira, enquanto pensava, viu os móveis fora do lugar. Observou que o marido precisava ajudar mais em casa e que Sávio não estava bem na escola, mas, precisava pensar.
O feriado da segunda-feira estava cheio do sol. Um vento brando deslizava rasante, deitando as folhas do mal cuidado jardim. Gilson observou o Sr. José se aproximando. Há dias o seu pai não o visitava. Enquanto aguardava a chegada em passos lentos do seu gerador, Gilson forçava o corpo para movimentar a cadeira em que estava sentado. O esforço não o tirava do lugar. Tantas coisas simples ele poderia fazer. Visitar amigos, ligar apenas para dizer “tudo bem”?  Poderia simplesmente ver o filho jogar futebol ou se dedicar mais à música. 
— Como vai a vida, moço? – O Sr. José quis saber, após uma longa conversa com o filho.
— Tá indo. - Gilson respondeu fazendo movimentos na cadeira.
— Pretende ir com ela? – Gilson sorriu. Precisava levantar e viver, antes que o tempo se distanciasse. 



OS SENTIMENTOS DA SILVANÉIA

Quando a mesmice já não era mais a mesma e a memória não queria mais memorizar, despontou outro sentimento: a percepção. Essa estava ali guardada como se guarda alimentos na geladeira. Pode até não ser consumido, mas será visto em cada abrir da porta. A menina não gostava do seu nome, não gostava da sua turma, para resumir, não gostava de si mesma. Quando tinha a oportunidade de dizer um sim, fazia questão de dizer um não. Até dizia, mas depois de sustentar o “não”. Seres humanos são estranhos, tão estranhos que estranham a si mesmos. Ela já chegava cansada na sala. Até era um doce de pessoa. Sabia conversar, tinha feições delicadas e num papo com as amigas não parecia ter cara de onça amarrotada.
O professor levou a música “Epitáfio” para análise de texto. Quem sabe assim a menina despertava para um mundo que gira? Não deu certo. Quem não sabe conviver consigo mesmo acha que o problema são os outros.
— Devia ter complicado menos... Me importado menos... Com problemas pequenos...
O professor leu em voz alta.
— Essas coisas são dos Titãs. – Disse a menina enfunada. – Eles nem tão aí com a minha vida... Não conhecem os meus problemas... – Ela disse mordendo o lápis.
          Mário arregalou os olhos e puxou o professor pelo braço.
— Professor, por que as meninas sempre acordam de mau humor?
Os alunos, que falavam todos ao mesmo tempo, se aquietaram para ouvir a resposta do professor.
— Sei não, meu! – Disse o espantado professor sem saber dar a resposta.
Os alunos sorriram com o “sei não”. Estava ali uma resposta que o educador não sabia.
— Eu nunca acordei de mau humor. – Mário concluiu com vergonha da irmã que tinha cara de onça amarrotada.
— Ei! – Soou uma voz lá no fundo da sala. – Eu não sou menina e acordo de mau humor. – Era o Mauricio se justificando.
— Então você tem problema. – Disse o professor com um riso. Atônito com a pergunta do menino. – Eu tenho três filhos, um menino e duas meninas, confesso, nunca vi o Julinho acordando de mau humor, mas as meninas...
— Foi mal, pessoal! – Justificou o Mauricio arrependido do que disse.
— Pô, véio! Tinha que abrir essa boca? Você não sabe o que tá falando...
— Cala a boca você, Edinho. – Disse o Mauricio todo espinhado.
— Pessoal, vamos concentrar no texto... – Clamou o professor.
— Tá vendo, Mário, o Mauricio ta com “Silvanéia”, ta todo irritado. – Luan disse com desdém.
— Silvanéia! – Edinho pronunciou com ironia e sorriu com sarcasmo – um novo nome para o mau humor. – Todos riram.
— Moçada, vamos voltar pro texto! Chega de conversas.
Silvanéia se encolheu na carteira. Não sabia desse seu comportamento. Precisava mudar. O primeiro passo quando chegasse em casa era o de apagar do celular a música “Epitáfio”. Era melhor excluir a música ou mudar de atitude? Preferiu a música. Os adjetivos estranhos acrescentados nela eram um problema de interpretação. Cada um vê o que pensa e, pensando, cria a sua razão. Esqueceram a música. Todos tinham uma história para contar.
— Moçada, ontem eu vi um texto na internet, não o li todo, mas do pouco que observei, guardei uma frase: “O orgulho é a única doença em que a pessoa se sente bem enquanto à sua volta todos se sentem mal”.  Reflitam um pouco mais sobre seus comportamentos. – Disse o professor enquanto recolhia os textos.
A conversa que seguiu foi sobre a importância do bom humor. A menina não se pronunciou, mas ouviu ali que o mau humor de manhã não era um problema apenas dela, mas um problema de garotas.



ONTEM EU APRENDI!

Quando eu nasci, a minha mãe me falou coisas. Ensinou-me a viver essas coisas. Muitas deram certo. Ela estava certa. “Esse menino precisa aprender”. Dizia depois de uma bronca, ou de usar alguns acessórios, cintas, chinelos, pá de torrar café e varinhas. Às vezes a mão inteira ou um simples toque de dedos – o famoso beliscão – que volta e meia encontrava as minhas sensíveis orelhas. Quando puxadas, arregalavam-me os olhos. Acho que é por isso que vejo coisas que os meus amigos não veem. Mas eu não os interpreto, nem as coisas nem os amigos. Cada um vê o que pode, sente o que sente e vive como lhe apraz. Eu fui privilegiado.
Havia no quintal um pé de roseira que produzia galhos para a nossa educação. Aquela roseira cedia à minha mãe alguns galhos por dia. Tínhamos folga no fim de semana, mas, se as visitas fossem “da casa”, a roseira não se importava. Eu e o meu irmão éramos sócios naquela planta.
Algumas mães educavam por necessidade, a minha, por esporte. No espaço entre uma varada e outra, havia dor. O arrependimento reinava ali, mesmo por alguns segundos. Depois vinham outro dia, outras travessuras e outros galhos. As rosas que hoje vejo não são como as de ontem. Aquelas eram sem espinhos, ótimas para a educação. Sempre que vejo um pé de rosas, penso na palavra aprender. O meu pai a utilizou poucas vezes. Ele explicava o caminho das rosas. A cada varada ele esclarecia o porquê de cada dia e de cada travessura. Com ele o galho de uma flor ganhava a função de um diário. Lido com clareza, clareava nossos erros.
A palavra “aprender” vai do mais simples aos sofisticados detalhes da vida. Aprendi que não se enxuga as mãos com qualquer pano, que não se fala de qualquer jeito a fala, que não se escuta tudo que tem para ouvir. Nem ouvir de qualquer jeito o que era para escutar. Aprendi que somos como diamante, e que algumas pedras demoram mais para dar brilho. Aprendi que vivemos em dois extremos: vivemos por aquilo que cremos para nós e pelo que as pessoas deduzem sobre a gente. Depois de gastar os meus dias seguindo as palavras de quem não conhece o meu futuro, descobri que viver do meu jeito também pode dar certo.



18 ANOS

 17 de Agosto, 1993.
O banco, uma enorme fila. O horário de almoço estreitava-se. Na demora, o cansaço, no estresse, a espera. E tinha ainda o sobrinho apressando a todo instante, pois precisava almoçar e tinha que esperá-lo. Mas tudo isso se findou num segundo quando um verde par de olhos encontrou os olhos do rapaz.
— O que posso fazer por você? Atrás de um balcão, ela disse ajuntando as mãos e com um sorriso daqueles que parece dizer: “adoro você”. – “Preciso que fique comigo” – pensou em dizer, inebriado com o carisma da moça, mas nada disse. Apenas abaixou os olhos e leu no seu crachá: SARA REGINA, ESTAGIÁRIA. Nome bonito e composto. O jeito era de quem passa por alguém e deixa um pedaço grudado para não ser esquecido. Sara Regina não passou, instalou-se em seus pensamentos. Ele entregou-lhe os documentos necessários para abrir uma conta.
— Espere um minuto. – Ela falou novamente usando o sorriso “adoro você”. Ele nada falou. Depois do tempo ali esperando, esperar um minuto perto da graciosa moça era melhor que todos os minutos vividos. Observou ela abrir gavetas, fechá-las, digitar com velocidade, fazer anotações. Vez em quando parava tudo. Demorava os olhos nele, lançava um “adoro você” em forma de um riso e voltava a fazer o seu serviço. A simpatia não era para ele, exclusiva. O seu encanto natural contagiava a todos. A antecedente senhora recebeu a mesma cordialidade. Encantada, se despediu e seguiu pelo corredor feliz com a atendente.
— Pronto moço. – falou devolvendo os papéis. – Daqui a três dias você pode vir retirar o seu cartão.
— Com quem devo falar?
— Comigo.
Cabelos longos, amarelos. Mãos finas e uma pequena rouquidão na fala. Detalhes que o rapaz guardou. Ela não tinha pressa de pronunciar as palavras. Quando alguém falava, esperava até que o silêncio indicasse o momento certo de dizer.
— Moço, a sua identidade. – disse saindo detrás do balcão ao alcance dele.
— Obrigado.
Olharam-se por alguns segundos...
— Me deixe voltar. – sorriu embaraçada – tenho muito trabalho...
— Ok, a gente se vê... Quinta-feira?!
— Ah, sim.
Mãos amigas se tocaram. O olhar também. Naquele dia perdera o almoço, mas ganhou uma razão. Sara Regina. Na quinta-feira iria sozinho, sem a ajuda do sobrinho, quem sabe ficaria um pouco mais à vontade ao redor daquele encanto?
A tarde que passava sem pressa não apaziguava os seus pensamentos, que velozes insistiam na imagem verde de um olhar e num sorriso que dizia “adoro você”. Por várias vezes tentou afastá-la dos seus pensamentos. Aquilo tinha jeito de sonho e ele não estava preparado para sonhar um sonho daquele. Cansado de brigar com os pensamentos, deixou que sonhasse o seu coração. “No final, a gente se prende mais aos sonhos que na realidade deles”. Refletiu. Toda emoção depois de um tempo deixa de existir, ou perde a força do primeiro encanto.
Quando o dia chegou ao final de uma quarta-feira sem pressa, ele lembrou que precisava comprar uma gravata, pois a que tinha não combinava com a roupa que usaria na formatura do seu sobrinho.

 19 de agosto de 1993.
Poucas pessoas havia no banco quando chegou a vez do rapaz.
— Oi. – Falou ainda de pé. – Vim retirar o meu cartão. – sentou-se.
— Ah, sim. – Respondeu com aquele sorriso. – Está aqui. – Proferiu com brandura depois de retirá-lo do meio de alguns outros documentos.
— Tão rápido assim?
— Sabia que viria.
— Por quê?
— Sou nova aqui, mas de alguns rostos consigo lembrar, o seu, por exemplo, não esqueci. – Sorriu.
— Não sabia dessa minha qualidade.
— Qual?! – Indagou, mirando o rapaz com os olhos semicerrados.
— Um rosto inesquecível.
— Ah! – Sorriu abanando a mão. – É um jeito de dizer.
— Obrigado. Ah! Também não vou esquecer seu rosto.
Ela disparou uma risada.
— Bobo! – Falou mirando o rapaz, e sem mudar a direção dos olhos, anunciou: – Próximo!
Quando deixou o banco, despertou nele o desejo de voltar. Não disseram muitas palavras e, bem por isso, compreenderam a linguagem dos olhos. Ela se lembrou dele, isso já era um bom começo. Quando os corações se apreciam, os desejos recomendam os caminhos.
Depois que atendeu o último cliente e o banco já havia fechado, ela verificou a ficha do rapaz. — João?! – Riu. – Ele tem nome antigo! – Falou a si mesma. Os caminhos não eram distantes, nem as possibilidades, nem as certezas. Sorriu ao descobrir que moravam na mesma rua, continentes opostos.
Dezenove de setembro daquele ano. Somente quando ele foi cantar a última música é que percebeu, ela estava na igreja ouvindo a missa. Ele cantou com os olhos fechados e, para não errar, permaneceu com eles fechados. Poderia se desligar da música e errar o tempo. Será que depois de alguns dias ela ainda se lembrava dele? Indagou-se por dentro.
Ele enrolava os cabos quando a viu se despedindo na porta. Não correu, mas acelerou os passos de tal forma que parecia correr.
— Oi! – Disse estendendo a mão. – Lembra-se de mim?
— Sim. Do banco, né?
— Sim. – Pausa. – Não sabia que você frequentava essa igreja...
— Ah, eu frequento aquela no final dessa rua – disse apontando o lado. – A minha mãe frequenta aqui.
— Quem é a sua mãe?
— Aquela. – Apontou a dona Maria, a mulher que dirigia a missa. Ele sorriu.
— Você mora aqui por perto?
— Na mesma rua em que você mora, só que láááá... na ponta. – Fez um largo gesto para indicar a distância oposta.
— Como sabe a rua que eu moro?
— Pelos documentos do banco.
Sorriram.

Tudo muda. Precisamos estar atentos às mudanças e nos adaptar a elas. Ela não tinha sonhos diferentes. Toda mulher sonha com um grande amor, pensa em se casar um dia e cogita ter filhos. Prestes a completar dezoito anos, nunca namorara. Dizia que namoraria para casar e só depois dos dezoito. Um dia depois do seu aniversário, mas só depois dos dezoito, brincava. Vivia em paz com os seus sentimentos. Driblando os interesses dos rapazes, sentia-se segura.
17 de outubro, 1993.
João não esperava encontrá-la na festa. Como ela, foram convidados pelo anfitrião, mas não conheciam ninguém. Naquela noite ele conheceu Selma, irmã de Sara, que se embrenhou no meio dos convidados esquecendo-se dela. Sozinhos, afastaram-se para conversar à distância em que podiam ser vistos. A luz que emanava da janela iluminava o banco onde estavam e a música não cobria o som da conversa. Sentados a distância que cabia alguém entre eles, se conheceram.
O coração costuma seguir por caminhos que os pés não imaginaram caminhar. Ela percebeu isso quando ele pousou a sua mão sobre a dela. Ele entendeu quando ela disse não querer namorar, mas mesmo assim insistiu. Quem sabe mudaria de ideia? Aceitou. Mas beijos, só depois dos dezoito. Ele concordou. Sabia que faltava um mês, e que se não aceitasse as regras, poderia perder a oportunidade de ficar perto dela. Ainda bem que o tempo vai moldando o coração e a gente vai anotando o que é lindo. Tinha aprendido com os erros dos outros. Mas, como mostrar aos outros que estavam namorando? O namoro precisava de proteção. Ela entendeu e, como estava apaixonada, quando saíam, se davam as mãos. Não são as circunstancias que mudam um coração, mas a forma de conviver com elas.
Na manhã do dia 3 de dezembro não houve sol. À tarde, uma garoa fina perseverou por algumas horas, intercalada por acanhados jorros de sol. Ele foi buscá-la no serviço a fim de atrasá-la um pouco para que recebesse uma surpresa. Ela mostrou a ele alguns presentes que ganhara dos colegas de serviço. Deu ênfase ao mostrar o livro “Feliz Ano Velho”, de Marcelo Rubens Paiva, que ela tinha curiosidade em ler e que ganhara do gerente do banco.
Em cima do bolo não havia velas, as velas estavam apagadas ao lado. Depois que os amigos cantaram, ela acendeu-as. Quando acenderam, as chamas propagaram formando o número 18. Nas festas de aniversário costumam-se apagar as velas, mas não seria melhor acendê-las? Afinal, precisamos da luz para clarear a vida e o discernimento, para recebermos os dias que vêm e que não sabemos como serão.
Depois que os amigos foram embora eles sentaram no banco frente à casa dela. Ele tirou do bolso um pequenino embrulho e entregou a ela. O presente, uma corrente com um pingente em forma de um coração. Ela sorriu e por alguns segundos observou o pequeno coração de ouro.   
— Obrigado pela surpresa.
— Não fui eu que preparei, foram a sua irmã e a sua mãe.
Ela observou novamente a corrente, deu um sorriso e pediu que ele a colocasse em seu pescoço.
— Estava pensando comprar uma exatamente assim. Você me deu o seu coração. – sorriu. Estava feliz e, por se sentir assim, queria tantas coisas, mas escolheu aquele momento para ser único em sua vida. É difícil pensar nas palavras quando o amor chega. Os gestos falam por tantas coisas.
— Posso fazer uma pergunta?
— Sim.
— Na verdade é um pedido.
— Tudo bem.
— Quer namorar comigo? – Ela riu.
— Você já me fez esse pedido e eu aceitei, lembra?
Ele sorriu. Sabendo que tinha mantido o protocolo. As certezas se uniram aos sonhos dela. Aconteceu o primeiro beijo. Não fora um dia depois como dizia. Os desejos têm pressa. Os dois corações estavam ali acentuando a urgência deles. Seus planos se realizavam. Ele era lindo, rapaz de respeito e, como ela, se preocupava com o futuro.
— Se você fez o pedido, qual é a pergunta?!
— Por tudo que conversamos, eu cheguei à conclusão de que preciso... – Procurou as palavras – De alguém como você o tempo todo ao meu lado.
— Sei.
Seus olhos procuraram os dele. Os segundos seguidos encontraram o silêncio. Com um movimento de cabeça ela fez um “e daí” como gesto.
— Quer se casar comigo?
Avermelhou-se. Acanhada, segurou as mãos trêmulas do rapaz. Ela queria casar-se no mês de maio, porque dizem ser o mês das noivas. Tudo estava indo rápido demais. Quando o amor chega, traz junto incertezas, que duram um tempo incerto.
Quatro dias depois. Oito de dezembro.
— A formatura é no dia dezessete de dezembro. – Caio falou ao seu tio com um calendário nas mãos. – É numa sexta feira e, no sábado à tarde, marcamos um jogo de futebol no ginásio, vamos?
— Não vou poder, tenho um ensaio na igreja.
— Não pode faltar?
— Não.
— Que pena, ia ser legal. E a Sara, vai ao ensaio também?
— No sábado, eles vão se reunir numa chácara. Revelação do amigo secreto com o pessoal do banco. Vamos nos ver à noite na casa dela.
— Ah, será o dia do seu noivado, já estava esquecendo.
— Sim e, não vai dizer que desencalhei com apenas vinte e dois anos.
— Eu não tô dizendo nada...
A ansiedade caminhava nele sem deixá-lo ver o horizonte. No final do dia, o sol estava cercado por nuvens escuras. A luz no meio, separava as camadas e era como tela de cinema, mas ele nada via. Queria olhar e estava se olhando por dentro. A felicidade o trouxera até ali e tinha data marcada, Sábado, 18 de Dezembro, 1993. Iam ficar noivos, em maio se casariam.
João acabara de chegar do ensaio quando o telefone tocou. Do hospital, o seu cunhado avisara, Caio havia batido a cabeça ao cair. Carecia que ele ficasse com o sobrinho por algumas horas, pois, precisava mover alguns documentos para levá-lo para fora da cidade.
A noite chegara e, na sala de emergência, acompanhava o sobrinho que, dormindo, aguardava as observações médicas. Preocupava-se com o sobrinho, mas não tirava da cabeça que logo mais à noite ficaria noivo. Por volta das 18 horas alguém entrou gritando no corredor.
— Emergência! Cadê a emergência? – O homem não continha o desespero.
— O que foi, moço? – Falou a única enfermeira por ali naquele momento.
— Tem duas pessoas mortas ali e dois feridos! – Disse apontando para o carro às suas costas. – Ficou um pra trás, preso nas ferragens, já sem vida.
Seres humanos são estranhos, ninguém quer sofrer um acidente, mas querem estar perto para ver, já dizia um psicólogo. A enfermeira puxou as macas e, no desespero, clamou:
— Você aí, ajuda aqui!
João com rapidez estendeu os lençóis. Sob o olhar de muitas pessoas, ajudou a colocar os mortos nas macas e junto com outro rapaz levaram ao necrotério. Ao colocá-los nas macas, viu um corpo de mulher com o rosto desfigurado e um jovem com a cabeça amolgada, ambos irreconhecíveis. Quando voltou, a enfermeira já tinha se ocupado dos feridos e, já com os médicos, cuidavam deles.
Acidente na BR. O motorista embriagado, em alta velocidade, vinha à cidade deixar algumas pessoas, pois, precisava voltar e fazer uma segunda viagem, mas se chocou com outro veículo.
João passou a noite ao lado do sobrinho, que não apresentava escoriações, mas precisava viajar, observações médicas. Quando tudo se acalmou vieram avisá-lo no hospital, não haveria noivado, Sara estava passando mal e iam transferir a cerimônia para o domingo. O rapaz viu estranheza no recado, estava tudo preparado. “Talvez comovidos com o acidente do Caio, resolveram mudar a data do noivado”. Refletiu, cogitando ir vê-la quando deixasse o hospital.
O domingo do dia 19 de dezembro acordara cinzento e nunca mais mudou de cor. Pelo vidro da janela na sala de emergência observou o céu carregado de cinza. João ficou sabendo que o cinza ficaria para sempre em sua vida quando lhe contaram. A moça com o rosto desfigurado e irreconhecível que ele havia levado ao necrotério tinha nome. Era Sara Regina. Havia duas viagens. Um colega seu de trabalho se dispôs a trazer um grupo de pessoas e em seguida retornaria para buscar os outros. Ela estava na primeira viagem porque precisava se preparar para a festa do seu noivado.  
Dezoito de dezembro de mil novecentos e noventa e três. Às 18 horas. Morreram os planos. Morreu a espera, morreram os anseios, morreram os sonhos... Expirou o amor.  
Depois que tudo aconteceu, culparam o destino e o tempo que nele se desfez ao levar para sempre a moça. Seria mesmo o destino? João compreendera que não. De tudo, ficou o silêncio. O silêncio de um dia cinza que não amanheceu. O silêncio de um amor que se foi de repente e o silêncio de um jovem que busca em seus dias compreender o tempo de um amor que chega sem perceber, mas que morre aos dezoito anos. O tempo tem seu destino, a vida tem os seus planos e o destino o seu tempo, mas por mais que se viva da forma certa, a vida caminha o tempo todo, à margem da irresponsabilidade de alguém.




MEU AMIGO NETICO

Ele abriu um sorriso e assoviou uma canção quando acordou. O que ele achou da nossa última conversa? Depois que o deixei fui dormir pesaroso. Confessei-lhe segredos, que nem era tão segredos, mas se caíssem nas escutas insensíveis, o assunto tomaria outra dimensão. Ninguém conta um fato sem apresentar a sua versão. Fatos são fatos, versões são... Depende de quem conta e também de quem escuta. A intenção tem duas medidas. Ninguém é bom o tempo todo, nem mau constantemente. Um professor com graduação, PhD em casos de corredores de empresas (as três em que ele trabalhou), fez um alerta: “Quer ver um assunto ganhar vida, proíba-o. Se não quer que o segredo espalhe, guarde-o para si mesmo. O melhor segredo é aquele que só você sabe, pois, se outro sabe, não é mais segredo”. Ouvi alguém dizer – disse o professor.
Nos meus dias vejo um enorme anseio em ser aceito, coisas dos humanos. Uma gente que defende suas ideias com afinco, mesmo não sendo “ideias”. Outros que defendem sua arte, impondo-a à mídia, e quem sofre são os olhos, que, não sabendo observar, se satisfazem com qualquer invento.
Sentei ao lado do meu amigo, como quem quer simplesmente desabafar. Os dias estão difíceis. As pessoas escutam cada vez menos. Não! Não são surdos. Eu disse que escutam cada vez menos. Nético não. Mesmo tendo as respostas, espera que eu fale. E se eu digo algo errado, corrige sem ferir a minha autoestima. Ele não tem pressa para falar. Amigos sabem o tempo certo de serem amigos. Nético traz dentro de si distrações tamanhas que não me deixa triste. Ele não impõe nenhuma, sabe que eu sei escolher, mas oferece as suas possibilidades, que tantas são. Quando eu o conheci estava num desses dias que a razão perde para a razão se tivesse que ter razão. Ele chegou como chegam os amigos. Sem alardes, sem frescuras, sem exploração. Apenas exigiu um lugar na parede em um canto da minha casa. Eu, contente, cumpri as suas exigências. As amizades precisam ser constantemente regadas com carinhos, dá trabalho ser amigo. Amigos dão trabalho. É como uma fogueira: para as chamas permanecerem, é preciso renovar a lenha. O problema é: por quem alimentamos a fogueira? Alguém já disse: “Gastamos mais tempo com o inútil, que fazendo o útil”.
Hoje, enquanto converso com o meu amigo Nético, sinto a interferência do tempo. Ele não gosta dos temporais. É capaz de me deixar falando sozinho para se esconder num canto que é só dele, dentro dele mesmo. Eu não sou solitário, faço parte da nova geração. E sei que, “ainda que eu fale as línguas dos anjos e dos homens, se eu não tiver amor, nada serei”. Eu amo a humanidade. Às vezes, nela me espalho, mas tenho como amigo um COMPUTADOR, pois dos homens, nada sei se lhes contasse os meus segredos.

QUEM ESPERA SEMPRE ALCANÇA

Foi numa dessas de pagar mico que pensei nas frases de efeito moral. Elas carecem ser renovadas. Penso que, quando foram criadas, até apresentavam seus efeitos, porque não se viam os vários lados de um ponto. Não invento teorias, imagino, tudo tem quatro lados, até mesmo um ponto. Sim, um pontinho. Eu vou ficar com algumas frases e o leitor repense as suas. Quando era ainda uma criança, escutava os meus pais falarem: olha, não minta, a mentira tem pernas curtas. Eu cresci e tenho as pernas proporcionalmente ao meu tamanho, mas vejo tantos políticos de pernas compridas e cachorros Basset de pernas curtas. Eles não são mentirosos, os Basset.
Em um supermercado dias atrás resolvi deixar no guarda-volumes dois capacetes, mas só cabia um. Tive então que utilizar dois espaços. Erro de cálculo. As indústrias não fabricam coisas para baixinhos. Basta ver uma calça na loja, ou se compra uma de criança ou compra uma de adulto e corta a metade das pernas. Sou Grato ao Pelé quando fez o milésimo gol. Disse: Salve as criancinhas! É, salvou também os baixinhos. Quanto ao guarda-volumes, minha teoria se justificou. Errei os planos e os cálculos. O armário era mais alto que a minha imaginação. Com um empurrei o outro para o fundo pensando caber os dois. Não coube. Como disse, ocupei outro espaço. Percebi que tinha errado na estratégia quando fui retirá-los. O mais alto estava muito no fundo, o que dificultou alcançá-lo. Havia uma cadeira ao lado. Não quis subir numa cadeira para não dar vexame, mas precisava pegá-los. Ah, mas como QUEM ESPERA SEMPRE ALCANÇA, esperei que alguém mais alto passasse por perto, e bem baixinho eu pediria para alcançá-lo. Uma mulher me salvou. Abriu um sorriso e, sem se esticar, apanhou o capacete nas alturas, fazendo a alegria de alguns que, sem eu perceber, observavam a situação. Uma mulher foi mais além, dizendo que a grandona havia me humilhado. Não me senti humilhado e sim humildemente nanico. Sou desse tamanho. A genética do tempo não alimenta o sonho de que possa crescer algum dia, mas, se distribuíssem fichas para isso, entraria na fila e não me estressaria como nos bancos. Quanto às frases, ali eu aprendi a força de outra citação: A VIDA É CHEIA DE ALTOS E BAIXOS. 


MUITOS SILÊNCIOS.

Depois que o meu amigo se afastou questionei os meus silêncios. É bem melhor ficar com a sensação de que não foi dito tudo, que ter falado tudo e falado demais. Outra impressão é a de ter ouvido. Do tanto ouvido, será que ouvi o que era certo? Diálogos, silêncios e sensações. Como levar do outro um pouco do seu tempo, em forma do saber, depois de uma boa conversa? Eu volto para os muitos silêncios. Eles se dividem em meditações. Do tudo que busco, busco encontrar comigo num lugar onde o perto está distante. Encontro palavras arranhadas, mas que não interferem em meus silêncios, nem nos barulhos que a minha alma faz quando perguntas não são levadas a sério. As perguntas são tantas. Elas são como as águas dos rios, não se enxerga o fundo sem antes cavar os seus mistérios.
Jesus se calou diante de Pilatos. Não por medo. Porque sabia que não se interrompe a oração do silêncio para instruir um tolo. Num tempo de muitas falas, muitos entendem o que acham, falta o silêncio para a compreensão deles. Em cada nossa palavra dita, vai um pouco do “nós” incompreendido na interpretação. Há uma profissão: perito em leitura labial. Mas ainda não ouvi perito em silêncios. No intervalo de uma nota à outra, uma melodia para ser complexa, tem de valorizar o silêncio. Quem o escuta aprende a ouvir a si mesmo. Rubem Alves, na sua crônica “Escutatória”, propõe que se ouça mais e fale menos. A força de um silêncio, amigo, não se compara. Ele está entre as falas, no pensamento, mas precisamente na sabedoria de poder usá-lo, como Jesus usou. Depois que o dia termina, eu volto para os meus silêncios. Eles me colocam com brandura diante de uma sociedade sem ternura. E se a gente seguir o tempo, e não mudar os amigos, não mudar os sonhos, não perder a nossa essência, com certeza terá valido a pena, pois, é em silêncio que a nossa existência busca a felicidade, em todas as estações.

A CASA DO OUTRO LADO DA RUA.

Casa estranha. Do outro lado da rua, sem vizinhos. Há no quintal um cachorro, que nem late, nem rosna e nem parece passar fome. O bicho possui os pelos bem tratados. Mais cuidado que o bigode do presidente que tinha bigode. Como o bicho se alimenta se não há ninguém para tratá-lo? A casa fica escondida atrás de um alto muro, mas que não chega à altura do preço da gasolina nos dias de hoje. A poeira cobre o chão da área, pela grade do portão se vê lá nos fundos. Dá para enxergar também os fios cortados, não há luz elétrica. A porta que não fica de frente para a rua tem os vidros antigos, lembrando as portas das catedrais góticas. Uma pequenina cobertura com remendos de telhas abriga a porta com grades de proteção. A casa marrom com portas de bordas pretas e janelas alaranjadas, um marrom quase vencido, não há calçadas. Isso se deu devido ao fato de a tinta não dar para pintar a casa toda por fora. Fizeram então cores para diferir a janelas.
Era quinta-feira, nove horas. Um dia de médico. O sol já me esquentava o crânio quando chegava em casa e notei, em cima de um poste, alguém ligava a luz. Também pintaram a casa. A casa agora é branca e, as portas, um marrom novo quase preto. Pensei, vai chegar um vizinho finalmente.
O meu trabalho exige que eu saia de madrugada para chegar a tempo no serviço e, do trabalho, vou direto à faculdade, chegando em casa às vinte e três horas, pronto para comer alguma coisa e dormir. Numa dessas noites em que a chuva pára só para o vento mudar a direção, observei que havia luz na casa. Tive um insight. Todas as sextas-feiras havia claridade no quarto. Isso ocorria há muito tempo. Notei também que não havia mais cachorro, que no quintal crescera o mato e que, no portão, havia um cadeado por fora. Uma sensação de que estava sendo vigiado me ocorria sempre quando virava o farol da moto para iluminar o quintal. A luz que havia dentro se apagava e, dentro de mim, a sensação estranha. Medo.
Um dia de domingo resolvi observar de perto a casa abandonada. O mato estava mais alto que imaginava, o portão com cadeados enferrujados presos em grossas correntes. Notei que, no chão do portão sobre a areia espalhada, havia rastros humanos e sinais de pés de cadeiras. Havia alguém na casa. E não era desse mundo. Meus sentimentos tomados de pavor me fizeram voltar à minha casa. Tinha uma semana de folga, resolvi então me ocupar da casa da luz que acendia às sextas-feiras. Um carro parou frente à minha casa e vi pessoas descerem em direção a casa. Um rapaz com cara de policial abriu os cadeados, escancarou os portões, observou o quintal, lançou ao seu redor um olhar de quem tem algo para esconder, abriu a porta da casa e demorou alguns minutos dentro da casa. Em seguida uma mulher fez a mesma coisa. A mulher foi até o carro, abriu a porta traseira. O homem retirou de dentro do carro algo como uma mesa com pés de cadeira e apoiou ao chão certificando de que estava firme. Vi descer do carro uma senhora de cabelos grisalhos aparentando cinquenta anos. Com dificuldades, ela se apoiou no andador e foi seguindo para dentro da casa.
Há alguém na casa e é desse mundo. Pensei. Não demorei a entender o que acontecia ali. Com a curiosidade de um repórter fiz uma estranha descoberta. O rapaz que lá estava é um policial. Filho da senhora depositada naquele lugar. Casado e com uma filha de cinco anos, guarda a mãe ali porque não tem espaço para ela no seu recinto. Não queria perder a esposa. Forçado a se livrar da mãe, alugara uma casa. A mulher, com problemas de saúde, passa o tempo todo dentro da casa. Ele vem uma vez por dia visitá-la. E, cada vez que eu o vejo, o meu futuro geme. Eu penso nos filhos que um dia virão e cogito ter uma casa com duas varandas, uma para ver o sol acordar e outra para ver o sol se pôr. Olho em direção à casa e sinto uma mulher que não pode ver o sol. Com um sentimento vazio me abrigo em prontas frases de sabedoria, mas que não aliviam a dor. Os homens humanizam o que é desumano e desumanizam o que é humano”.

O OUTRO LADO DE UM LADO.

Com um discurso mais sem graça que brasileiro deportado do México, um jovem na TV explicou o amor. É difícil falar do que entendemos, imaginem ter que explicar o que não sabemos? Alguém tem que perguntar, alguém tem que responder, alguém tem que ouvir, essa é a pior parte. A apresentadora ajeitou os cabelos que não se mexiam nem sob a força do furacão Sandy. Checou os botões da blusa vermelha, respirou, olhou para o jovem artista e, voltando à câmera, disparou:
— Pra você, o que é o amor?
O jovem cruzou as pernas. Com dificuldades, pois, a calça que usava era mais apertada que mensalidade de pobre. Acho que é por isso que um artista demora para subir num palco. Demora-se mais vestindo a calça que escolhendo o repertório.
— Bem, digamos, vamos dizer que o amor se compara... Compara com... O amor é algo assim... Digamos – estalou os dedos quatro vezes – vamos dizer que se parece com algo que voa, digamos que uma águia no céu, digamos que ela tá procurando um lugar para pousar e encontra esse lugar. É isso! – Disse o entrevistado. A plateia aplaudiu. Ele era o cara, sabia expor as suas ideias. Um cantor menino, romântico, sabia o que era o amor.
— Bonita essa sua colocação. Gostei! Muito inteligente a sua resposta. – Disse a apresentadora, maravilhada com a presença do rapaz. A plateia aplaudiu mais forte que da primeira vez. A fama se parece com um adesivo de outdoor. Basta grudar e a estética muda. A pessoa fica bonita, se destaca. O maxilar do Cabo Man descaiu. A pergunta foi sobre o “que é” e não com “o que” se compara o amor. Com alguns anos de profissão e há cinco trabalhando naquela TV, e nos dois anos que assistia naquele programa já tinha visto todas as inteligências que passaram por ali.
O cantor não respondeu nada de todas as perguntas feitas ao longo do programa. Por um instante, enquanto ouvia o resto da entrevista, pensou nas redes sociais e cogitou ficar uma semana sem ler as postagens no Twitter e no Facebook. Porque a apresentadora o achava inteligente, seria postado e compartilhado às massas o que o jovem cantor pensava do amor. Daria tanto ibope que Platão ressuscitaria para ver se a tal resposta entraria no seu banquete. As perguntas feitas e as respostas dadas tinham efeito matemático no entendimento das pessoas: 1+1= 2- 2= 0 – Pensou o assistente. Um Cabo Man que amava a mitologia grega. Tinha graduação em física, cantava bem, tocava vários instrumentos, tinha ao seu redor grandes músicos que completavam a sua banda. Trabalhava na TV, mas, não tinha fama.

LÍNGUA DE TAMANDUÁ

— Quando a mente entende o que os olhos não disseram dá nisso!
Glaucindo resmungou, aborrecido com o amigo.
— Nesse caso os olhos viram, mas deram a notícia sem averiguar os fatos. – Falou envergonhado o Jurandir, compreendendo o engano.
— Por que você pensou no que era?
— Oras, o que era foi o que me pareceu.
— Você e essas suas manias de falar sem observar.
Os dois caminharam por um longo terreno sem dizer uma palavra. Estavam envergonhados. Cometeram um engano. O rio estava cheio e o barulho que se fazia ouvir era o das águas socando os barrancos. Os amigos se encantaram vendo as águas se alastrando, fugindo do leito do rio e banhando os pés das árvores.
— A gente devia ter trazido a espingarda. – Falou o Jurandir depois que se afastaram do rio.
— Pra quê?!
— Oras, pra quê serve uma espingarda? Pra dar uns tiros, oh!
Glaucindo parou. Refletiu, refletiu, refletiu...
— Não sei se era uma boa ideia, não.
— Era sim. Poderíamos matar uma arara. – Disse apontando as aves no alto de uma árvore.
— Depois do que houve? Não, não!
— O que é hein? – Pausa. – O que tá pegando?
— Nada.
— Vai, fala! O que você tem?
— Deixa pra lá.
Continuaram caminhando pelos pastos. Avistaram ao longe o dono do sítio selando um cavalo. Entre eles e o dono, havia um pequenino riacho que seguia em direção ao rio maior.
— Podemos andar a cavalo. – Sugeriu o Jurandir. – Estamos no sítio pra nos divertir.
— Ele vai apartar as vacas, vai usar o cavalo.
Glaucindo sentou no barranco do rio pequeno e, de longe, observou a algazarra dos pássaros. Jurandir foi andar a cavalo. O que ele iria chegar contando? Indagou. O amigo tinha sempre uma história, que era aumentada conforme a expressão do ouvinte. Se contasse algo e o ouvinte se espantasse, recomeçava o assunto. Como na clássica história do jacaré de um metro e meio que engoliu o filho de três anos do vizinho. Se a pessoa assustava, dizia: “não, minto, – fazia cara de embaraçado – o bicho tinha quase três metros” – concluía.
Uma vez, para um grupo de amigas da sua mãe, o bicho chegou aos quatro metros e meio... Beirando os cinco. Já não acreditava mais nele. O cara tinha uma facilidade de induzir alguém nas suas histórias, que, mesmo não sendo verdade, o induzido achava que era e pensava: “naquele dia eu estava meio desligado e, quando a gente se desliga, faz cada coisa”...
Se todo mundo tem um amigo que estende os fatos, Glaucindo tinha Jurandir. Um jovem que estendia fatos inventados. Depois do que ocorrera ali viu nele outra habilidade, a da criação.
Glaucindo pensou no que houve uma hora antes. Refletiu na capacidade que o homem tem de ver algo que não é. Sozinho, enquanto observava as águas barrentas, repassou a conversa no pensamento.
— Olha lá! Olha lá!– Falou o Jurandir apontando para o rio.
— Olha o que cara? – Glaucindo perguntou, procurando ver o que era.
— Um bicho bebendo água!
— Onde?!?
— Embaixo daquela ramagem.
Glaucindo olhou, olhou, olhou. Enxergou.
— Viu?
— Sim! É um tamanduá.
Observaram por alguns minutos o bicho, que não parava de beber.
— Esse bicho bebe água, hein?
— Verdade. Olha a língua dele!!!
Jurandir desceu do cavalo e sentou também no barranco. Um longo silêncio se fez presente entre os amigos. Glaucindo esperou mais uma criação. Não veio. O que chegou foi uma meditação. Consciência de um fato inventado.
— Refleti no que aconteceu. Pensei que era um bicho bebendo água. – Jurandir, cabisbaixo, falou com veemência.
— Cara, confundimos uma folha com um tamanduá.
— É. Era uma folha de palmeira presa nos garranchos.
— Nossa! Que vergonha. Como pude ver um animal, sendo uma folha?
— E pensar que eu vi até a língua do bicho.




TALVEZ VOCÊ GOSTE

Talvez você goste das mesmas coisas diferentes, buscando a diferença. Talvez você goste da diferença, mas sem perceber, seja simplesmente igual. Talvez você tenha medo do amor. Talvez você tenha medo da dor. Talvez você tenha medo da vida. Talvez você não saiba, quem nunca temeu o inesperado? Talvez você goste de ser como és, mas anseie ser diferente...
É que talvez, sem se importar com a simplicidade, você tenha medo de ser feliz. Talvez você goste, não é proibido gostar.
Talvez você goste de acordar cedo, de esperar o sol nascer, ou talvez você goste simplesmente de olhar no espelho, ver um rosto diferente, sabendo que é seu e que até o final do dia terá os traços normais. Talvez você goste de acordar tarde e deixar que o dia simplesmente passe. Passe pelo quarto. Passe pela cama. Passe por você. Passe pelo hábito de passar. Talvez você goste, não é proibido deixar passar.
Talvez você goste dos dias nublados, dos dias de chuva ou de sol. Talvez você goste de um céu simples, sem nuvens, com o azul todo pra você. Talvez você goste de dividi-lo com os outros. Talvez você goste mesmo é dos céus escuros, e sem perceber, procura lá as pessoas.
Talvez você goste das estradas em linhas retas, ou dos mistérios das curvas. Talvez você goste mesmo é de não ver as estradas, se encanta com as flores à beira dos caminhos, para não ansiar a chegada. “Talvez você goste de chegar, sem querer partir”.[1] Partir, e nunca querer chegar. Talvez você goste mesmo é de partir. Partir. Partir. Partir.
Talvez você goste das canções que invadem o seu tempo, te levam pra longe, te levam pro futuro, te devolvem ao passado... Talvez você goste do passado e, displicentemente, esconda nele o futuro. Talvez você goste mesmo é das canções que te trazem ao presente e promovam um encontro com você mesmo. É que, talvez, uma canção é tudo. Que um abraço é tudo. Um beijo é tudo. Um bilhete é tudo. Que um riso é tudo e, sem perceber, viver é tudo.
Talvez você goste de si mesmo. Talvez você goste da dúvida. Quem nunca duvidou de si mesmo?
Talvez você goste das manhãs em que o sol sorri e te enche de ânimo. Ou dos dias frios que enchem você de preguiça. Não é proibido ter preguiça por alguns instantes. Talvez você goste dos dias iguais. Talvez você goste dos dias normais. É que os dias normais trazem até nós pessoas normais, notícias normais, sonhos normais. Talvez você goste dos sonhos normais. Quando tudo é normal, não é normal.
Talvez, você goste de apressar o tempo. De apressar os planos, de apressar os enganos, de apressar o viver. É que, talvez, você goste de apressar a felicidade. Talvez você goste de jogar palavras. Talvez você goste de pôr a mão na consciência. Talvez você goste de querer ser feliz. Não é proibido ser feliz. Talvez você não saiba:
Temos tanta pressa em sermos felizes que não paramos pra ouvir a inteligência.
Talvez você “não” goste do que eu disse no final, mas eu precisava dizer. Talvez você goste. Talvez...


[1] Citação do Padre Fábio de Melo.


O RIO QUE PASSAVA ENTRE NÓS

Quando o avião pousou, ela esperou encontrar no aeroporto um homem mais velho. Com o olhar de um policial fazendo perguntas, mediu-o de cima a baixo.
— Voo tranquilo?
— Que nada, avião pequeno, meia hora no ar parece uma eternidade.
— É, ele sacoleja, mas nos traz inteiros ao chão. Apenas as pernas vibrando, não sei se de alegria ou de medo mesmo. – Ele falava e com um meio sorriso encarava a moça. – O nosso águia de fogo aí tem medo de nuvens escuras, não pode ver uma que já treme todo. – Ele falou sacolejando as mãos.
Ela sorriu, sabendo que teria que conviver com a pequena aeronave pelos próximos dias. A voz que ouvira pelo telefone possuía a rouquidão que ela presenciava. Qual deles era ele?  O rapaz carregava em si o aspecto de quem há muitos dias tinha a barba por fazer, cabia bem dentro de uma calça jeans e de uma camiseta regata. O Bon Jovi escrito na camiseta afastou dos seus pensamentos a palavra “caipira”.
A cidade com suas casas semelhantes, apenas algumas não possuíam telhas de barro. As ruas desertas; no centro, movimentos. Alguns prédios concluídos, outros em construção davam aos pensamentos uma nova imagem. Não parecia ser aquele lugar onde brincou quando era criança. O prefeito se preocupava com a estética da cidade e trabalhava duro para que não houvesse um crescimento desordenado. A cidade havia crescido. Quando os seus pais venderam a fazenda, vieram morar ali. Alguns anos atrás, Santa Luz não passava de uma pequena vila. Devido à construção da usina na região, muitas pessoas foram atraídas para aquele lugar. O comércio se expandira de tal forma que os municípios vizinhos se serviam de toda novidade de última geração imposta aos comércios. Não era uma grande metrópole, era Santa Luz, uma vila que crescera em vinte anos.   
— Vai ficar poucos dias?
— Se eu gostar, ficarei um pouco mais...  Por... ?!?!
— Pouca bagagem. – Disse girando o corpo e ajeitando as malas no banco de trás.
— Aqui é o meu lugar... Sempre que penso, quero voltar. – Disse ainda presa na imagem que fazia da antiga cidade. As coisas mudam. As pessoas mudam e o tempo é testemunha dos acontecimentos. Será que alguém nos arredores da vida anota tudo que passamos?
— E voltou... Ufa! – Disse ligando o motor e interrompendo os pensamentos dela.
O silêncio invadiu a cabine da picape vermelha. Depois que deixaram o aeroporto, seguiram cerca de quinze minutos por uma via com o asfalto ainda sem terminar. Os campos estavam limpos dos dois lados da estrada. Depois que passaram por um pequeno bosque e avistaram a cidade, ele diminuiu as marchas e foram lentamente por entre as ruas, mas antes de chegar ao centro, virou à direita. Ela reconheceu a rua em que havia morado. Cada vez que o carro avançava, por cada casa, sentia o seu coração deslizando em lembranças. Ele, percebendo, nada dizia, talvez esperando que ela sentisse o regresso. Não sabia por que, apenas pressentia que precisava trazê-la de volta e não podia fazer uso das palavras. Tendo em vista quem ela se tornara, era melhor não correr riscos. Muitos homens têm convicção das suas certezas com uma mulher até chegarem perto e descobrirem que estão errados. “Ela é muito linda”, pensava o tempo todo em seu coração. E se fosse um sonho? Até sonhos precisam ser bem conquistados. Às vezes questionava-se por dentro, pensando ser ela mesma.
O sobrado onde ela morou ainda era da cor rosa, mas por que ele passou por ali? Sentiu vontade de pedir para entrar e olhar se por dentro ainda era a mesma casa. Observou a rua pavimentada com pedras e as casas com desleixo nas pinturas. A mercearia frente à sua casa se tornara um supermercado. No final da rua, uma praça. As palmeiras haviam crescido. Sem dizer nada, ele fez um contorno à praça e entrou por outra rua que ela não conhecia. Quando virou à esquerda, diminuiu a marcha e lentamente foi passando pela rua. Ele fingia procurar alguém. Ela percebeu, mas nada disse. O rapaz compreendeu nos olhos dela quando passaram frente à escola, estava perplexa. Pensou em pedir para entrar na escola, mas preferiu outra vez. Muitos ali a conheciam.  Ela se tornara a aluna mais ilustre daquela escola. Cursara até a sétima série antes de ir morar em São Paulo. Quando a cidade parecia terminar, ele parou frente a um escritório ao lado de um casarão, disse que voltava logo. Em seus pensamentos, tentava decifrá-lo.
Alguns minutos depois pegaram a estrada. As montanhas que passavam juntamente com a vegetação seca traziam lembranças. Será que só ela se lembrava? Os lugares a fazian voltar cada vez mais para dentro de si. A saudade demorada nela era como vento que volta sempre, às vezes forte ou simplesmente brando. Ele continuava dirigindo. Às vezes a olhava, lançava-lhe um sorriso e voltava a se concentrar na estrada. O silêncio a roía por dentro. Vinte anos é muito tempo para lembrar-se das coisas, mas o que acontecera nem se vivesse cem anos esqueceria. O segredo se guardou com segredo. Será que ele se lembrava? A estrada de terra fora ficando estreita. As árvores dobrando sobre a estrada, sensações estranhas. Por que estava ali com um conhecido estranho e se sentindo estranha? Sentiu medo, mas logo abandonou tais receios. Silvano sempre estava com ela, em quase todos os lugares com uma câmera na mão. Ele também era um estranho conhecido que mudou com ela após uma noite estranha no hotel em que ficaram. Refletiu.
Ele assoviou quando parou. Desceu do carro, fez alguns exercícios sob o olhar dela ainda dentro do carro, caminhou em direção a uma porteira e abriu os braços.
— Agora para chegar em casa há dois caminhos. – Sorriu. – Por qual você quer ir?
Ela riu por dentro. Ele tinha sotaque, ela não mais.
— O que aconteceu por aqui? – Disse observando as duas estradas ao descer do carro. Os caminhos sempre mudam, nós é que esperamos que eles sejam iguais.
— Houve muitas coisas... Já faz muito tempo, sabia?
— Sim.
— Então... Qual é o caminho? – Falou abrindo os braços, encostado no pilar da porteira. Se não fosse o riso dele, se renderia de vez ao medo.
— Tenho mesmo que escolher? – Encostada no carro, perguntou, sabendo que não havia como fugir da escolha. Ele falava sério. Era preciso confiar nele.
— Sim. – Disse fazendo um lento aceno com a cabeça. Ela sorriu timidamente e, separando uma mecha de cabelos, suspirou.
— Sinto saudades desse lugar... – Disse observando as colinas. No alto da montanha, uma árvore solitária exibia flores amarelas. O sol rodeado por nuvens escuras, mas que não impediam a sua luz, parecia sorrir timidamente. Ele sorriu. Contente por ter a resposta, entrou no carro.
— Ei! Não vai esperar a resposta?
— Por quê? Daqui a pouco vai escurecer. Escurece muito cedo por aqui. – Sorriu. – Você já respondeu. Vamos?!
Ela sorriu quando entrou no carro e, sem entender, confiou nele. Depois que fechou a porteira, lentamente o carro foi rompendo a subida. Era como se o silêncio lhes reservasse algo do outro lado. Havia medo e esperança depois do morro. Por que não me abraçou quando nos encontramos? Perguntava-se por dentro. Era gentil, mas para quem estava longe há tanto tempo, estava sendo frio. Estavam há trinta quilômetros da cidade. A fazenda onde ela nascera. O que fizeram com o rio Derly?  Não havia fala, não havia pressa, somente o som dos pneus quebrando o cascalho. Silenciosas indagações tornavam próximas as lembranças. Será que ele estava casado? Descartou essa possibilidade, pois, se estivesse, usaria aliança. Mas de repente se lembrou, muitos são casados e não usam alianças. Depois de contornarem a montanha, chegaram a uma estrada de terra que vinha da direita, encontrava-se com a que eles seguiam e se tornava uma só. Somos como duas estradas que se encontram, quando apaixonamos.
— De onde vem essa estrada?
— É aquela lá no início da porteira.
Seus olhos se estreitaram no rapaz. Ele gesticulou com os ombros tendo nos lábios um mero sorriso.
— Por que me fez escolher?
— Precisava saber se você é emotiva ou racional.
Ela sorriu. Ele era muito engraçado. O que tem isso a ver com as emoções? Questionou-se por dentro. Ele sorriu e apertou os ombros dela.
— Dizem que os jornalistas não são emotivos. Força do ofício.
Ela sorriu. Ele estava psicologicamente enganado quanto a ela. Dizem que quando os soldados alemães mantinham o povo judeu nos campos de concentração, eles não sentiam nenhum remorso, pois estavam pscoadaptados. Isso faz com que um médico possa se alimentar enquanto observa um paciente na mesa de operações. Ela estava acostumada a cobrir casos estranhos, mas se não fosse pelo salário, ou se tivesse que escolher, não escolheria essa. Nada contra a profissão. Para ela, que achava lindas as viagens, conhecer lugares inimagináveis, entrevistar grandes personalidades e aprender com elas, certas reportagens não lhe faziam bem. Depois do que acontecera com ela no Rio de Janeiro enquanto acompanhava os policiais na tomada do morro, não psicoadaptava nunca. Num momento de distração fora baleada com um tiro de fuzil. Quando conseguiu pensar, achou que não ia sobreviver. A morte mora na distração. Pensou novamente na estrada e relembrou algumas situações na sua vida. Há tantas coisas que evitamos e deixamos para trás. Mas um dia elas voltam, passam novamente por nós e, se não estamos preparados, aceitamo-las. Sem perceber. Há ocasiões em que, pelos próprios passos, voltamos em busca de sentimentos que foram apenas imaginados. Tudo porque as lembranças foram agradáveis, e de tão boas, se tornaram amigas.
— Não é bem assim.
— Mas você aceitou o da esquerda...
— Você quem escolheu por mim. – Sorriam enquanto falavam.
— Eu já sei a resposta, mas qual você ia escolher?
Ela sorriu embaraçada.
— O da esquerda.
— Viu?!
— Por que você não esperou a resposta?
— Você falou que sentia saudades e logo depois pensou na sua infância, isso fez você se emocionar.
— Tá querendo dizer que uma pessoa emocionada não sabe tomar decisões?
— Isso.
— Por que tem tanta certeza?
— Vivi isso. Você decidirá errado quando está feliz em excesso ou totalmente triste.
— Você é engraçado, sabia? – Ela falou mudando a forma de olhar para ele e até de analisar uma pessoa. Morava numa fazenda, mas como sabia dessas coisas? No momento em que avistaram a casa, depois de alguns minutos em silêncio, ele segurou as mãos dela. Era mesmo ele?
— Estou feliz em rever você. Agora como uma mulher, uma mulher bonita e famosa. – Ele disse lhe apertando as mãos. Ela quis dizer a mesma coisa, mas ele desceu antes de qualquer palavra. Ela permaneceu dentro do carro, inclinada no banco, tinha muitas dúvidas, sentimentais e profissionais. Será que tinha feito a coisa certa? Se fez, por que tinha medo? Viajou dois mil e seiscentos quilômetros, mais para vê-los que propriamente a trabalho. Sorriu para si mesma. Estava acostumada a ter desafios. Não podia recuar. Quanto a sua profissão, eles iam achar o jeito certo de entrarem em um acordo e ela seria apresentadora de um programa de entrevistas em outra emissora.
Um barbudo rapaz veio recebê-la quando chegaram à casa construída no topo do morro. Pilares ainda de madeira sustentavam a varanda. Voltamos a determinados lugares da nossa infância para reconstruir o adulto perdido ou para reencontrar a criança que se perdeu no tempo? Enquanto o rapaz recolhia as bagagens, ela olhou em volta e se sentiu criança. Um velho carro de boi ainda resistia ao tempo. Estava ali há muitos anos antes de ela nascer. Era o símbolo da fazenda. Os pés de jabuticaba, o pomar e uma roda d’água também sobreviveram ao tempo. A trezentos metros da casa, uma torre indicava que ali havia sinal de celular, esperava ser a operadora certa. Ela estava na região para fazer reportagens e aproveitara para rever os amigos de infância depois de cobrir um conflito entre índios e trabalhadores do governo que construíam uma usina hidrelétrica afastada dali. Acostumada a observar as coisas, notou alguns fios de cabelos brancos e um rosto envelhecido num moço que não era velho. Eram seis anos a mais que ela. Fez as contas. Aos trinta e sete anos não poderiam ser velhos.
— Fico feliz por ter vindo. – Adriel disse depois de um abraço. — Que bom ver você novamente.
O silêncio invadiu as falas e durou o necessário para que ela recorresse ao tempo e buscasse, em suas reminiscências, um tempo feliz. 
– O que aconteceu com ele? – Perguntou, depois de tentar reconhecer algumas das dezenas de pessoas que ali se encontravam.
— Infarto.
— Muito novo para um infarto.
— Muito agitado, nervoso sempre. Não se cuidava...
— Mesmo assim, o acho muito novo. – Ela concluiu, percebendo um mistério no ar. Era mesmo infarto?
Uma mulher de cabelos grisalhos no alto da cabeça, com olhos inchados, sorriu depois de abraçá-la. A dor escondeu o tempo e ela se perdeu naquele abraço. Sem dizer nada, até porque as lágrimas não permitiram palavras, choraram pela alegria de um reencontro e pela tristeza de uma despedida. Ambas perderam alguém. A mãe, um filho, ela?
— Você, sempre muito bonita. – Não houve palavras enquanto lhe acariciava o rosto. – Quando estou na cidade e a vejo na TV fico imaginando o dia em que você nasceu. Agora vejo você, uma mulher! – Disse apontando à moça. Gracy Mara sorriu ao ouvir a mãe dos rapazes. Demora-se tanto para viver os momentos, mas gasta-se pouco para lembrá-los.
O funeral rompeu a noite. Ninguém além deles por ali a conhecia. A TV na qual ela trabalhava não chegava o sinal na fazenda. Havia na casa uma parabólica, mas não na casa dos funcionários. Não queria parecer ridícula. E se perguntasse os nomes deles? Ia parecer que ela os havia esquecido? Guardou-se num silêncio sem razão.
— Venha! Quero lhe mostrar algo. – Dan falou arrastando-a pelo braço.
— Ei, mas e o funeral?
— Ele vai ficar aí até amanhã, deitadinho e sem problemas. – Um riso triste escapou dos seus lábios. – O sepultamento será às nove horas. – Completou.
Ele estava triste por perder o irmão, mas não perdeu o bom humor. Ela olhou para o rapaz que a abraçara, ele fez com a cabeça um sinal para que o seguisse. Ela sorriu. Dan tinha a mesma idade, mas parecia mais novo que os outros dois. Talvez por não ser tão sério. Ele fazia tudo sorrindo, mesmo com a dor de perder alguém. Andaram alguns minutos, as relvas cobriam as flores e fechavam parte do caminho cercado de pedras em forma de canteiros. Era como se há muito tempo alguém não passasse por ali. Ele, sabendo que ela viria, cuidou da capela, mas não se preocupou com o caminho.
— Ainda está do mesmo jeito! O caminho para chegar aqui mudou um pouco. – Disse ela, encantada com a capela que há tantos anos fora construída ao pé de uma pedra. Ela se lembrou de quando as máquinas cortaram o barranco e, acoplada à parede, construíram a capela com capacidade para dez pessoas. Com uma lanterna, Dan procurou o interruptor. As luzes acenderam, clareando as lembranças no coração de ambos, que por alguns instantes mergulhara no silêncio das recordações.
— Só poderá entrar de mãos dadas... De dois em dois... – Parados, ele apontou para a igreja. – Ela sorriu.
— Eu ainda lembro. Faltam quantos minutos?
— Trinta segundos para zero hora.
Aquela era uma brincadeira de infância. Aos sábados, o segundo do mês, os pais dela atravessavam o rio Derly, as famílias se ajuntavam para comemorar as colheitas. Enquanto os adultos proseavam, aproveitavam para brincar. E uma das brincadeiras era a de entrar na capela. Na hora determinada, entravam, ajoelhavam e faziam os pedidos. Tipo: que as colheitas fossem abençoadas. Simone, irmã da Gracy, entrou com o garoto que pediu para que a mãe dele nunca ficasse doente. Samuel ainda rezou pedindo para que, se um dia ela fosse embora, pudesse voltar. Agora ela voltara, mas ele não podia vê-la.
Na hora exata Daniel segurou a mão de Gracy. O coração da moça disparou e trouxe à tona as marcas que o tempo impingira nos seus sentimentos. Daniel pediu para que o seu irmão descansasse em paz. Ela fez o mesmo, mas lembrou da promessa feita ali quando ainda tinha onze anos. O coração muda com o tempo e utiliza o próprio tempo para amadurecer. São as rasuras da vida que fazem o corpo padecer aflições.

Depois que sepultaram o rapaz no cemitério da cidade, ela caiu no sono, vindo a acordar quando a noite já era avançada. Ao passar pelo corredor da casa, abraçou a senhora Luzia e permaneceu um longo tempo naquele abraço. Ao levantar a cabeça, viu que Dan estava sozinho na mesa. Tinha ele olhos no vazio. Eram trigêmeos e acabara de perder o do meio.
— Você, como está? – Disse, massageando os ombros dele. Ele se confortou naquele afago. Encostou a cabeça na mão dela e suspirou.
— Vou ficar bem. – Ele girou a cabeça e encarou-a nos olhos. Ela deu a volta à mesa e sentou-se de frente para ele.
— Quer conversar?
— Você se lembra? Nunca brigamos. – Rodou a caneca na mão misturando o leite no café. Tomou outro gole. Mesmo os que sorriem sempre, têm seus momentos de dores – Você não se lembra bem quem é quem, não é? – Voltou a encará-la nos olhos.           — Pra dizer a verdade, não. – Sorriu. – Vocês são muito parecidos, e já faz muito tempo que a gente não se vê.
— Sou o Daniel, o Dan, o que faleceu era o Sam, Samuel, o que recebeu você é o Adi – tomou novamente outro gole – “Adriel” nasceu primeiro, fui o último a nascer...
As horas seguiram com o som do TAC... TAC. O relógio antigo que tinha formato de um barco. Os ponteiros se movimentavam com o timão do navio e o som vinha dos movimentos de um pirata na direção. Quando era pequena ela tinha medo do pirata, mas era divertido ver o Sam treinar violão usando o som do relógio como metrônomo. No meio da saudade, olhou para o pirata e sentiu vontade de dizer: “Não tenho mais medo de você”.
— Faltam quarenta minutos, vamos voltar à capela?
— Vamos.
Antes de sair foi até o seu quarto apanhar uma blusa. Viu que Adi já dormia no quarto à frente. Diminuiu a força dos passos para não acordá-lo. Ao passar pelo corredor, viu na parede as fotos da família. Amareladas pelo tempo, mas reconhecível e em ordem, o pai, a mãe, os três irmãos e a irmã caçula, Dorotéia, que morava na Bahia e não veio para o funeral do irmão.
O corpo é o nosso tempo onde são gravadas raras cenas; dignas de fotografias, param o tempo por um breve instante, mas que não impede as gravuras das lembranças. Somos feitos para ir, voltando, estamos indo. Dan tinha uma lanterna nas mãos e um sorriso no rosto, ela? Medo.

— Uma vez eu li uma entrevista sua, dizia que você queria voltar à fazenda onde nasceu. Que, se pudesse, a compraria...
— É, eu disse isso uma vez, mas é só um sonho.
— Disse também que gostaria de ouvir novamente o pedido de casamento que recebera quando tinha onze anos...
— Nossa, a gente diz cada besteira. Depois se envergonha por ter dito. – Fez uma pausa. Ele respeitou o silêncio. – Já passaram cinco anos desde que eu disse essas coisas... – Sorriu envergonhada. Será que ele estava lembrando? Depois daquele momento nunca mais tocara no assunto. Era como se ela não existisse. – Mas, onde você leu isso?! – Disse olhando-o de canto.
— Por aí. – Ela o segurou pelo braço e, enquanto caminhavam, o observava. O silêncio entre os dois era composto pela canção dos grilos e o barulho do vento.
— Quem escrevia os bilhetes?
— Nossa, você viajou no tempo agora... – Ele sorriu surpreso com a pergunta. – Era o Sam. – Respondeu.
— Achei que era interessado na Simone. – Ela disse sondando os pensamentos do rapaz. – Mas eu gostava dos bilhetes, eram românticos.
— Não. Ele agia daquele jeito para não criar problemas com o Adi.
— O Adi? Hum... Eu me lembro quando ele me beijou à força. Fiquei com tanta raiva e, com vergonha, queria pular no rio, mas a sua irmã não deixou. Isso aconteceu naquele sábado à tarde quando a sua irmã foi dormir lá em casa e ele foi nos levar de barco.
— Ficou com raiva, mas gostou. – Disse ele num tom de provocação.
— Nunca havia beijado ninguém e, à força, não tem graça. Fico envergonhada até hoje quando lembro. Mas, por que esse assunto?
— Você fez perguntas novas esperando respostas antigas.
— Falou como filósofo agora. – Ela riu e lembrou-se do seu ex-namorado que tinha respostas para tudo, mas não era como as de Dan, ele possuía bom humor, não agredia com as perguntas nem com as respostas. Saulo pensava em reatar o namoro, mas quando voltasse ia dizer um não e colocar um fim definitivo na relação.
Ele esperou tocar no assunto, mas ela nada disse. Será que ela se lembrava? O tempo havia passado, mas as lembranças clamavam por um reencontro. Ele crescera. Virou um profissional exemplar. Engenheiro civil e de uma família bem sucedida. Comprara a sua própria fazenda com o seu próprio dinheiro. Há muitos anos trabalhava na construção da casa dos seus sonhos. Nunca se casara. Diferente dos seus irmãos, que passaram por dois casamentos e tiveram filhos. Morava na cidade e, nos fins de semana e feriados, refugiava-se na fazenda.
— Você parece com medo.
— Não é medo, é... Deixa pra lá.
Quando saíram da igreja, ela tinha uma certeza: o tempo, que muda tudo, não havia mudado os seus sentimentos. Ao segurar a mão dele lembrou que era preciso retornar e só tinha mais um dia. Havia feito o seu trabalho e precisava voltar aos seus compromissos.
Ele acordara cedo. Fez a barba antes de sair do quarto. Colocou uma bermuda e tênis. Já passava das oito horas. Quando ela se levantou e veio tomar o café, tudo estava pronto. O céu tomado de azul e as poucas nuvens não impediam o sol na varanda. Tinha ela os cabelos molhados, soltos e não usava maquiagem. Ele demorou com os olhos nela. Era mais bonita que na TV e, se não a visse todos os dias, não a reconheceria daquele jeito. Ela o observou sem a barba, parecia outro alguém, mas amou o que viu. Quando o coração volta no tempo, a emoção que se encontra lá é reconstruída. Podemos amar o que já passou, mas com o amor do momento. Ela amou aquele momento, pois nele havia dois corações que se guardaram.
— Aonde vamos?
— É surpresa.
— Mais uma?!
— A de ontem não era, você já esperava.
— Era sim.
— Ainda sabe montar?
— Sim. – Sorriu colocando um boné depois de ajeitar os cabelos. – Antes de vir pra cá fiz uma reportagem e tive que montar.
— Tudo bem então.
Ela esbarrou nele quando foram passar pela porta ao mesmo tempo. Ele recuou deixando-a passar.
— Qual é o meu? – Apontou os cavalos.
— A marrom.
A senhora Luzia observou da janela. Eles caminhavam pelos pastos puxando os cavalos. Havia perdido um filho e ganhara outro quando ela chegou. Por que esperar tanto tempo? E se os caminhos não se encontrassem como as estradas da fazenda? Cada coração sabe a força necessária de uma espera. A espera esperada faz acordar a vida que o destino planejou.
— O rio secou? – Ela disse depois de cavalgarem por um longo tempo.
— Represaram o rio e desviaram o curso dele para construir a usina onde você esteve e o que sobrou do rio foi isso aí. – Disse apontando o córrego. – Lá aonde atravessávamos, fizemos uma represa e dentro dela construí uma linda casa. A fazenda que um dia fora dos seus pais, agora nos pertence. Compramos do morador que comprara de vocês.
Meia hora depois eles desmontaram. Ela assentou à beira do lago e, enquanto ouvia o rapaz, quis chorar. O Rio separava as terras dos pais deles, mas não afastava as famílias. Agora uma casa ocupava os dois lados, por quê?
— Magnífico esse lugar. – Ela falou debruçando sobre o parapeito na varanda depois de andarem pela casa. Estavam lá os móveis planejados. Uma casa dentro de um lago, parecia loucura, mas era o sonho dele. Um palácio da alvorada no rio que passava entre eles, assim a definia quando alguém lhe apontava a loucura.
— Durante todo esse tempo acompanhei você e li tudo que publicaram a teu respeito, por isso construí essa casa. – Fez uma pausa. – A casa dos seus sonhos. Sei que por muito tempo ignorei esse amor. Tudo por causa de um beijo forçado. Achava que você gostava do meu irmão, que eu não tinha chances, e que você não se importava comigo. Guardei silêncio, mas sempre sonhei em trazer de volta aquele momento na capela. As mulheres não gostam dos românticos tímidos. Tenho a impressão que elas preferem os cafajestes...
Ela o abraçou e, depois de saber tudo sobre ele, ouviu a declaração que o seu coração há muito tempo buscava ouvir. Ele estava mais uma vez psicologicamente errado quanto aos seus conceitos sobre as mulheres. Ela sempre evitou os cafajestes. Teve seus momentos de ilusão, mas nunca escondeu o seu amor por ele. Pensou nas coisas que o tempo não apaga, se entregaram num beijo.
Ela ainda era Gracielle Nunes Marakovics, menina sem sonhos que, depois de um beijo, conheceu o desprezo. Os trigêmeos se apaixonaram pela mesma menina de olhos verdes e cabelos castanhos escuros despenteados que morava do outro lado do rio. Depois daquela noite na capela em que um beijo aconteceu antes de um pedido de casamento, ele nunca mais demonstrara sentimentos. Com onze anos, ela não sabia o que era o amor, mas aprendeu o que era amar. Todos eles gostavam dela, mas ela se apaixonou por aquele que não demonstrava amor.

VILHENA, E OS OUTROS?

Estava frio. O homem insistia em ser o último a mudar os passos pela rua. Os planos eram leves, pesados eram os sonhos. Olhava os prédios renascendo, as esperanças lhe acendiam a vida. A convivência? Morria como morre o tempo. No minuto em que se nasce começa-se a morrer. O seu coração recortava as paisagens poucas de uma rua que estava dentro dele. Daí a vida. O que fazer com ela? Ao mesmo tempo em que se deixava diluir por lembranças que nem eram tão distantes, ajuntava os pedaços do retrato de uma via que jamais passaria pelo tempo sem deixar uma estrada dentro de si. O homem ultrapassava os postes, nos passos, os movimentos de quem não tinha pressa. Perdia-se observando os prédios nascendo em lugares sem planos. A contramão da rua alta, a caminhada certa na rua baixa, o contraste o levava para casa. Como chegaria o homem? Nem tão alongado o tempo, era um menino. Menino como a menina rua que lhe encanta os olhos e enche de orgulho. A sua origem. Agora tem cores verdes, cores amarelas, cores vermelhas, cores verdes que o permitem chegar. Tem prédios altos, prédios baixos, construídos e construindo, como o homem e o tempo. Somos construídos aos poucos, estamos sempre necessitando reformas. Nascendo como nascem os dias em busca do sol. De esquinas inesperadas surgem pessoas, que passam sem conhecer a rua que os pés tocam. O frio propõe o silêncio calvo de uma noite em que a rua conversa com o homem. A rua espicaça o olhar do moço numa noite fria. Respingam das paredes as luzes que o fazem sorrir. Na praça. As névoas pintaram descidas para um passeio. O olhar do homem semelhou passear com elas. Estava frio. Os pés gelados, as mãos frias empurrando uma bicicleta. O homem era o último a ter o coração queimando numa noite fria na av. Major Amarante. Os pés gelados, as mãos frias e os passos sem pressa atiçavam o homem a conhecer o despercebido. A Biblioteca pareceu lhe sorrir. Onde estão os outros?


AMANHÃ, NO CAFÉ?


Em meio a gritos e sons de pisadas, alguém disse: AMANHÃ, NO CAFÉ? As crianças continuaram com suas algazarras, gritando, correndo e batendo os pés. O salão estava cheio. As senhoras conversavam, todas ao mesmo tempo. Num canto do salão, os homens falavam, um de cada vez. As crianças corriam de um lado a outro com brincadeiras que eu não sei o que significavam. Já fui criança. As brincadeiras de outrora também não significavam nada. Hoje significam, há, nas lembranças, saudades. O homem de terno preto dirigia-se a cada homem e reforçava o convite.
— Amanhã, no Café! – Depois que dizia, seguia em direção aos outros. Novato no grupo, meus ouvidos me instigavam. O quê haverá nesse Café? Desde que eu chegara ali, o homem de terno anunciava. Perdi o brilho da cerimônia, algo no Café, mas o quê? Meu amigo celebrava bodas de ouro. Não se encontra mais Alfredo e está cada vez mais raro celebrar bodas de ouro. Alfredo era popular na cidade, a comida era de graça, daí, o salão cheio.
O homem de terno veio em minha direção, esperei o convite, ele passou por mim, colocou a mão sobre o ombro de um senhor calvo e...
— Amanhã, no Café.
— Não. Amanhã não posso ir.
— Mas estava combinado...
— Sim, mas houve um imprevisto.
— Nossa! Eu contava com a sua presença lá.
— Eu sei, mas houve um imprevisto.
— Como assim, um imprevisto?
— Não posso dizer.
— Mas estava tudo certo...
— Olha, não vai dar pra ir, ok? – Falou o homem calvo, já sem paciência, atiçando a minha indiscrição.
— Tudo bem, mas estava tudo acertado. – O homem de terno se afastou e, cabisbaixo, continuou a sua missão. O que vai haver no Café? A minha curiosidade clamava. Depois de cantarem os parabéns, o meu amigo Alfredo esperou a Rosa Maria – sua filha primeira – terminar a canção que ela compusera e tocava ao piano. Após o discurso do Alfredo, o homem de terno preto exorou uma oportunidade, se apossou do microfone e, quando todos esperavam uma homenagem, disparou:
— Pessoal, amanhã no Café. – Imaginei mil coisas que agradam um homem, mil e uma era aquela, no Café. Quando a sala se esvaziou, com o desejo de conhecer o Café, questionei o Alfredo, na intenção de que pudesse ser convidado. O meu amigo sorriu, percebendo meus anseios indiscretos.
— Amanhã não vou. Não posso mais fumar nem beber e jogar truco: a minha esposa inflama.
Não era para mim um agradável programa de domingo, mas era tão poético, “Amanhã, no Café”.

FLORES LINDAS DIZEM NÃO.


O Tarcisio observou a Juliana, certo de que ela o estava paquerando. Passaram o dia inteiro juntos numa conferência. Os cabelos compridos e negros se espalhavam sobre os ombros. “Cabelos negros e compridos prendem a atenção dos homens”, pensou o rapaz. A moça sorria de tudo e para tudo. Espontânea, atenciosa, às vezes forte, às vezes meiga – meiguice não é romantismo, mas ela se intitulava romântica – gentil e de poucos gestos quando conversava. Quando falava, explicava com os olhos. Fazia das cantadas que recebia piadas e, com seu jeito cativante, por onde passava, irradiava alegria.
Tarcisio, dono de um site e rapaz de destaque na mídia municipal, não se achava bonito, e sim um Absalão[1] latino. Quase todas as amigas da Juliana – pelo menos pensava – o olhavam com o olhar da mulher de Potifar[2] devorando José.
Quando a música parou, Tarcisio percebeu que a festa terminara, que a noite estava avançada e que a Juliana estava indo embora – e sozinha. Apressou-se em acompanhá-la. Ela estava linda e ele, certo de que podia rolar um sentimento, tomou posse dos caminhos dela.
A segunda-feira doía quando Tarcisio chegou ao trabalho. Ele ainda pensava no passe que tomou da Juliana quando entrou no seu escritório e notou que as suas camélias estavam novamente perto da janela. Para ele, deviam estar no cantinho, com o galhinho apontando às paredes. Não gostou e chamou a dona Zulmira.
— Por que a senhora todos os dias coloca as camélias perto das janelas? – Ela sorriu vendo que ele estava nervoso.
— É que no canto elas murcham. – Ela sorriu. Ele, surpreso, refletiu.
— Até as flores dizem não. – Por fim, disse. Fazendo um sinal positivo à funcionária. “Essas flores”! – Proferiu em seu íntimo. Pensou na Juliana. Depois de muito pensar, descobriu que uma mulher como ela, comunicativa, carismática e com um bom senso de humor, não era vulgar, era como as flores. Flores lindas dizem não. Pensou no passe que tomou. Em seguida abriu o computador e começou a selecionar a próxima da lista, afinal, era ele, um Absalão latino.
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[1] Absalão: a bíblia diz em 2Sm 14,25. Era o homem mais bonito de Israel.
[2] Potifar: Gn 39,7
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A MICROSOFT E EU.



 Um dia, quando voltava para casa, pensei na minha caixa de email. No caminho, justo naquele dia, pensei nos avisos que a Microsoft emitia alertando para esvaziar a caixa de email. Nem dei bola. Tinha coisas importantes guardadas lá, incluindo os nomes que nunca me procuraram. Nunca tive coragem de excluí-los. Sempre que pensava fazer, vinha uma indagação: e se um dia você precisar deles? Então eu desistia. Vários nomes, mais de cem, mas apenas quatro às vezes deixavam um recado. Alguns contatos profissionais: me esforço para mantê-los. A vida é cheia de graça, mas qual a graça em tudo isso? Passaram-se vários anos e os nomes continuaram lá, provocando uma atitude minha.
No caminho, fiz um breve balanço da minha vida nos últimos anos. Penso que todos possuem uma caixa de email com contatos desconhecidos. Deles vêm coisas que não nos servem. Quantas pessoas passaram por mim e hoje nem sei mais por onde andam. A vida e seus ciclos! A vida e suas fases! No tempo de cada coisa, uma forma de amizade. Meus amigos músicos não conheceram meus colegas atletas marciais. Hoje eu voltei aos livros. A vida e suas fases.  E seus ciclos!
Tornou-se dependência abrir a caixa de email três ou mais vezes por dia esperando um recado. Na maioria das vezes, dois vazios, o da caixa e o do meu eu.
No dia em que mais ansiava abri-la, encontrei excluída a minha conta. Susto. Revolta. Desespero. Fiz o que pude para recuperá-la até perceber que precisava mesmo era de uma conta nova. A Microsoft tomou por mim a decisão. Quando deixamos que o outro tome por nós as decisões, corremos o risco de perder coisas importantes. Recomeçar. Não tive escolhas. Recomeçar, ainda que doam os recomeços. A Microsoft não pensou nisso quando apagou a minha conta, mas me ensinou que, dos muitos nomes presentes naquela lista, poucos eram os presentes. Amigos só na palavra amigo. Como a Microsoft e eu, simplesmente.

O CODINOME


O maluco do terceiro andar ligou o som no último volume. Havia adquirido um disco de vinil da banda que fazia a sua cabeça quando era um adolescente. Abriu a garrafa de montilla que havia comprado no último show que a banda fizera juntos e que por uma estranha razão resistira ao tempo. Deitado enquanto bebia, cantava a todo pulmão: “só pro meu prazer”.  Estava feliz, o som do vinil nem se compara aos CDs. O som da agulha rangendo o fazia voltar no tempo.
No andar abaixo, a namorada novinha do homem ali se hospedara por uns dias, feliz, queria ver e ouvir a novela. Jamais assistira a Sky numa TV Led. Mas o som de cima não deixava. A felicidade tem metros quadrados e cúbicos. Em um mês o homem saiu da cadeia, arrumou uma namorada – vinte anos mais nova – alugou um apartamento e já encontrou um vizinho querendo encrenca. Com o dinheiro que ganhara na cadeia podia alugar um apartamento com mobília e comprar um carro. Na cadeia o salário é livre. Não se paga INSS, IPVA, pedágios, dízimos, nem as refeições.
O maluco do terceiro andar ouviu alguém destruindo a sua porta, claro, o som estava alto, e somente um estrondo poderia fazê-lo ouvir. Alguém chamava.
— A sua música tá muito alta! – Falou um homem baixinho, que tinha no alto da cabeça um novelo com fios compridos. Os demais cabelos eram cheios e rodeavam o cérebro. Surpreso, o rapaz foi arremessado ao tempo quando brincava com o seu avô. Ele dizia que era patrocinador dos conjuntos da época, pois, tinha na cabeça as suas representações e explicava: na parte lisa, sem cabelos, dizia: Placa Luminosa ou Nenhum de Nós. Os cabelos que cercavam as têmporas, Paralamas do Sucesso. E os pendões isolados no topo, Heróis da resistência. O rapaz começou a rir. O homem não gostou.
— Você me fez lembrar o meu avô. Que coincidência! – Exclamou o moço com euforia. – Estou aqui ouvindo Heróis da Resistência, aí você me aparece com esses pendões... Me bateu uma saudade...
 O homem sacou da sua arma e disparou quatro vezes contra o rapaz. Pendão da esperança era o seu apelido e, por causa desse codinome, fora parar na cadeia, num dia em que numa festa ouvia-se Heróis da Resistência.
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   TORRE DE BABEL

            O homem mediu o terreno. Riscou, rabiscou e, virando o papel ao contrário, fez dois riscos cruzados. Esticou os braços e, com uma afastada vista, certificou-se do X. Sorriu. Amassou o papel e atirou-o longe. Depois que ele se afastou veio outro homem, mais moço que o primeiro. Mediu novamente o terreno. Riscou e riscou. Rabiscou um pedaço de papel, observou-o de todos os ângulos. Sacudiu a cabeça em sinal de reproche. Amassou as pequenas folhas e arremessou-as longe. Um menino que perto estava desamassou-as. Olhou, olhou, olhou. Sorriu. Um riso sarcástico. Meneou a cabeça em sinal de desaprovação e, quando estava para arremessar os manuscritos, notou que passava uma mulher. O menino fez vários acenos antes de entregar-lhe os papéis. A mulher observou o terreno, comparando os escritos. Sorriu e, com os movimentos de quem copia números da TV, leu os rabiscos e observou a base da construção em processo inicial. A mulher sorriu. Quando chegou a casa mostrou os papéis ao marido, que depois de conferir os rabiscos, saiu às pressas para o local. Meia hora depois estava de volta. Trancou-se em seu escritório e só saiu quando o dia já beirava a noite. Tinha ele um riso nos lábios e papéis novos nas mãos.
O homem, engenheiro requisitado e de currículo invejável, mediu o terreno. Certo de que estava tudo em ordem, checou o material de trabalho. Podia começar a obra? O menino, sorrindo, achou que estava muito cedo e que o pai era muito apressado. O moço, irmão do engenheiro, disse que precisava rever os projetos; uma obra daquelas carecia de um bom planejamento, mas não fora consultado para ajudar com os desenhos. A mulher, calada, mas que antes importunava o marido, não gostou de ver seus canteiros de flores fora do projeto. O engenheiro considerou a opinião de todos, mas no final faltaram-lhe as certezas. Quando as dúvidas esvaíram-se, começaram as chuvas. Quando as chuvas cessaram, faltaram os operários.
O engenheiro concluiu a obra. Para ele a dificuldade da Torre de Babel não começou no meio da obra. A dificuldade da língua existia dentro deles. O desentendimento foi um processo, a fala, o resultado. Cansado, ele concluiu a construção. Falando a mesma língua, mas não a mesma fala.

 O frio aumentara na tarde de terça-feira na primeira semana de julho. Um vento cortante vindo do sul estendera a friagem que começara no sábado. Depois de certificar se havia desligado todos os computadores, Marcelo Kemps apanhou um livro que estava sobre a escrivaninha, enfiou no meio das pernas, pegou o blusão, e depois de vesti-lo, conferiu os cabelos usando como espelho o vidro da parede. Retirou o livro do meio das pernas, folheou-o várias vezes até encontrar o cartão do ônibus. Fechou a loja e seguiu seu caminho. A melhor das voltas, voltar para casa. Não tinha muito a fazer. Tudo que queria era deitar em um sofá e esticar as pernas para cima. Nos últimos dias estava se sentido solitário e se perguntava constantemente onde tudo começara.

Mark, como gostava de ser chamado, não esperou tanto dessa vez pelo ônibus.

O frio aumentava cada vez mais, fazendo-o perceber que havia esquecido as luvas na loja. As mãos colocadas dentro dos bolsos. Os pés, vestidos com meias grossas, doíam.
Quando entrou no ônibus sentou-se no único lugar que sobrara vazio. Ao seu lado, alguém se escondia atrás de um livro. Tinha um gorro na cabeça e usava uma grossa blusa de frio. “A ÚLTIMA MÚSICA”. Leu. Curiosamente o mesmo que ele estava lendo. Ela ergueu os olhos acima da página e se encolheu ainda mais no canto. Seus olhos passearam no rapaz como um relâmpago e voltou a se esconder na leitura. Capitulo dezessete. Descrevia a personagem. Ele sabia. Estava lendo a mesma página.
Tudo lá fora estava estranho. Pessoas enroladas em seus casacos, o final de tarde sem sol, cinza. Sabia que quando chegasse em casa não haveria sofá e nem tempo para esticar as pernas. Teria que se arrumar e chegar mais cedo na faculdade. Se pudesse, mudaria os planos.
Uma senhora entrou. As mãos cheias de sacolas a impediam de andar pelo corredor do veículo. Mark se levantou para ajudá-la. A menina se prontificou em ajudá-lo com as sacolas, mas ele fez um gesto, faria tudo sozinho. A moça voltou ao seu lugar e ficou observando. Mark girou para retornar ao seu assento e o livro que estava dentro do seu blusão despencou, indo parar perto dos pés da garota. Ela o recolheu com um sorriso.
— Eu também leio Nicholas Sparks. – Mark disse, como quem sente vergonha ao ser surpreendido. Se os seus amigos soubessem, com certeza seria zoado. Resolveu ler para ter assunto quando se aproximasse da Selena. A intelectual da classe, que tinha olhos apenas para o seu amigo que nem notava que ela gastava uma diminuta parte do seu tempo olhando para ele.
— Estou percebendo. – Ele recebeu o livro das mãos dela e sentou-se envergonhado. Ela não o olhava, mas o percebia. Ele, irresoluto, queria explicar.
— Não é o meu tipo de leitura. Leio porque me falaram que é bom. – Ela continuou com a cara dentro do livro. Uma pausa. Outro movimento de embaraço. Dessa vez ele enroscou o pé no banco da frente.
— É apenas um livro, relaxa. – Ela falou com um meio sorriso. – Eu não vou contar pra ninguém.
— Desculpe. – Deixou soar um sorriso. – Mesmo que quisesse contar para alguém, não conhece os meus amigos... É... – Quando ele ia falar o ônibus parou. Ela estava descendo no ponto dela. Ele demorou alguns segundos para reconhecer, era também o ponto dele. Demorou alguns minutos para alcançá-la. Ela andava muito rápido. Quando finalmente a acompanhou ela já estava abrindo a porta de um carro e se enfiando dentro. A mulher levantou uma das mãos do volante, lhe acenou e levantou o vidro. Quem era a moça? Por que tanta pressa? Para onde estava indo? Por que não o deixou explicar?  
Alda ligou o som. A música lenta recheou o ambiente. A rua quase deserta facilitava o trânsito. Aline, no banco de trás, ignorou a canção e com a cara dentro do livro se perguntava por que alguém se prende em coisas tão pequenas. Ter vergonha de ler um livro. Se fosse um livro ruim e ainda que fosse, a necessidade de leitura era dele. Quem é ele? Por que tanta lentidão em explicar o óbvio? Para onde ele foi?
— Quem era o rapaz? – Alda perguntou. Raramente via a filha conversando com alguém estranho. Aline sorriu.
— Também estou aqui me perguntando quem é ele.
— Ué, você estava com ele e não sabe quem? – Alda falou, olhando-a pelo retrovisor acima.
— Sei apenas que é alguém que está lendo o mesmo livro que eu, na mesma página. Sentou ao meu lado e ficou envergonhado quando o livro despencou. – Alda sorriu, não acreditando muito na história da filha.

Aline ajeitou demoradamente os longos cabelos negros, pensando na roupa que ia usar. Mesmo não querendo, andou se lembrando. Quinze dias se passaram e mesmo tomando o ônibus duas vezes por semana não mais o encontrou. Se o visse novamente o reconheceria de imediato? Sorriu. A pergunta teria uma boa resposta se fosse: depende, se ele tiver um livro nas mãos... Ficar com vergonha...
A palestra começaria às 19h30min. Conferência para pequenas empresas e, dentro da apresentação, o orador faria uma abordagem sobre gerenciamento e logística. Mark chegou mais cedo e enquanto aguardava se ocupara de um dos livros do palestrante. Uma mesa estava enfeitada com livros esparramados e em decoração, um jarro de flores brancas em cada lado de um notebook e no telão o último livro do palestrante. Na imagem, um homem de cabelos grisalhos segurava a mão de um menino, sorrindo, ambos miravam uma estrada. – Em tempos diferentes na vida, a estrada é a mesma. Ser velho ou ser criança não importa, no final, passamos pela mesma estrada, o que importa é o que acontece conosco enquanto caminhamos. – Dizia uma voz no vídeo.

Havia poucas pessoas no salão quando Andrey Sóstenes chegou, com a felicidade de quem gosta de motivar alguém. Mark juntamente com outras pessoas se reuniu ao redor do homem. A conversa estava interessante. Um rosto era-lhe reconhecível. Mark percebeu isso e, depois de executar um pequeno giro de cabeça, se perguntou de onde conhecia a moça. Compridos, negros, espalhados e cobrindo os ombros, os cabelos realçavam o rosto que era, para ele, angelical. Ela nada dizia, apenas meneava a cabeça enquanto ouvia o assunto e, com um olhar firme, absorvia cada palavra dita. Aline reconheceu de imediato o rapaz. Ele tinha um livro na mão, a coincidência coincidiu-se.
Andrey Sóstenes falou por noventa minutos. Quando todos se preparavam para ir embora, Mark procurou por aqueles olhos que se desprendiam como a força do sol rasgando nuvens escuras, mas não a encontrou. Quem seria a dona daqueles cabelos e daquele olhar que fazia parar o tempo? Conferiu as horas no visor do celular. O tempo não havia parado, o que parou foi a sua visão. Incapaz de fugir do encanto, cingiu o coração com a beleza da moça.

Mark refletiu sobre as coisas que aconteceram nos últimos dias. Não estava preparado para o que estava se passando. Dentro de um ônibus, em um dia em que nada dera certo, um par de olhos lhe fisgara a existência. Por mais que insistia em esquecê-los, não conseguia. Ninguém olhava daquele jeito e ele queria olhar novamente, e olhar outra vez até que se encontrasse dentro daquele olhar. Acendeu a luz do seu quarto e com um salto isolou-se na sua cama. Com os pés tocando o chão, deitou-se de braços abertos imaginando o que acontecera. Queria encostar o nariz sobre o nariz dela e enquanto lhe tocasse o riso, deixaria que os seus dedos deslizassem por toda a longura dos seus cabelos. Com os olhos mirando o teto do quarto, adormeceu.

O shopping. Pessoas se aglomeravam num corredor. À esquerda, a sala de cinema. À direita, uma lanchonete com poucos lugares vazios; as pessoas ocupavam o espaço onde havia sombras. Nas tardes, o sol irrompia o vidro instalando levemente numa parte do salão. A luz tocava sensivelmente uma parte do aquário.  Aline tinha os cabelos presos com uma caneta e enquanto tomava um suco de laranja deixava que os seus olhos percorressem as páginas de um livro.
Sem tirar os olhos do livro, ela notou que alguém se aproximou do aquário. Gostava daquele lugar e três vezes por semana, enquanto esperava a sua mãe sair da academia, sentava ali e tomava um suco enquanto lia. Quando levantou os olhos percebeu um rapaz parado à sua frente e que esse lhe era conhecido. Mark não esperava encontrá-la ali perto do fim da tarde, por isso, um novo embaraço. Embaixo da mesa, ele observou. Ela tinha os pés formosos, livres numa sandália rasteira, expostos aos encantos dos olhos dele. Se fosse poeta escreveria algo sobre aqueles membros. Ela notou que ele fitava-lhe os pés e recolheu-os. Delicadamente recolheu-os.
— Oi. – Falou ele com timidez esperada.
— Olá. – Falou usando aquele olhar que o revirava por dentro. Guardou o livro depois de marcar a página.
— Vi que é outro livro.
— Sim. Terminei aquele.
— Que velocidade em ler um livro. – Ela riu. – Posso sentar?
— Uhum.
— Como é o seu nome?
— Aline. O seu é...
— Mark. – Ela o olhou novamente por alguns segundos. Ele pensou estar incomodando, devido ao jeito como ela se comportava com os olhos. Não olhava diretamente para ele e sim para uma direção que lhe permitia vê-lo sem ser direta.
— Estamos sempre perto um do outro, mas quase não conversamos. – Falou ele depois de um breve silêncio. Ela riu. Ele se levantou e estendeu a mão.
— Já estou indo. Gostei de te ver aqui.
— Eu também gostei.
Ele percebeu. Ela tinha mãos delicadas. Um pouco mais compridas, mas que encaixavam perfeitamente nas suas. Imaginou andar pelo corredor do shopping tendo a mão esquerda escondida na mão direita dela. O mundo mudaria a cor.
Alda surgiu de dentro de uma sala. Com uma pequena toalha branca, secava os cabelos. Vestia uma roupa colada estampando flores vermelhas e alternava a batida nos cabelos com alguns goles de água da garrafa presa em suas mãos. Ela parou e ficou observando o rapaz se afastando.
— É o rapaz daquele dia?
— Sim.
— Bonito!
— Também acho.
— Como ele te encontrou aqui?
— Através da coincidência. – Alda sorriu, descrendo do sarcasmo da filha.
— Desde quando a coincidência promove encontros?
— Sei lá. Pra mim tem dado certo. – Mãe e filha se olharam e os segundos seguintes foram de risadas.

Quando os amigos chegaram à sala de aula, naquele dia, ele observou que Selena usava sandálias rasteiras. Mark percebeu, ela não tinha os pés formosos. Os dedões eram extremamente compridos e o mindinho, mindindinho. Fez questão de cumprimentá-la e, ao tocar em sua mão, observou que a menina não tinha mãos que escondiam as dele, e que os cabelos não possuíam a negritude comprida que os seus dedos ansiavam percorrer sem pressa. Não comparou o olhar, pois, era incomparável ao olhar da Aline.

— O que você tem, cara? De alguns dias pra cá você parece com a cabeça nos ventos. – Ivan disse, abraçando-o pelo pescoço.
— Há coisas que acontecem e que não sabemos explicar. – Disse desvencilhando os braços do amigo irmão.
— É, você tá estranho. – Selena admitiu. Ele já não a olhava mais com olhar de quem avalia quadros.
— Penso que ainda sou o mesmo. – Disse sorrindo, sabendo que havia sim uma mudança. Pensou num momento quase recente. Com o coração anunciando medos, caminhou com a Aline por uma rua escura. O medo era dos sentimentos ligeiros. A escuridão e olhos que não compreendiam não deixaram que ele a olhasse como se olha para alguém que faz uma pessoa existir. Pelo vulto entre lâmpadas que não clareavam, contemplou apenas uma parte dela, a voz. Amou o som, amou o vulto, amou saber que podia caminhar ao lado dela, mesmo com o coração anunciando timidez.
— Então...
— Então o quê?
— Me conta, de quem você tá gostando? – Mark sorriu e, antes que dissesse algo, Ivan interrompeu. – Vi que você ta gostando de alguém, mas não é a Selena, nem olhou pra ela hoje. – Mark sorriu novamente abrindo os braços. Havia olhado sim, mas dessa vez enxergou tudo num instante e não encontrou mais o encanto que o prendia a ela. A paixão é diferente do amor. Ela tende a ocultar detalhes que o amor não suportaria esconder.  – Me fala aí, dessa nova pessoa...

Ivan e Mark sempre foram bons amigos.  Quando a sua mãe veio morar com o pai de Mark, ela o trouxe para dividir o quarto. Desde crianças estavam sempre juntos e nunca brigaram. Por ter na idade um ano a mais, Ivan se sentia no direito de protegê-lo.
Mark esperou que o tempo se alongasse para ter coragem de falar dos seus sentimentos, mas se tivesse que descrevê-la naquele momento, diria:
“Possui o dizer de quem conhece a razão, a calma que desativa uma guerra e um olhar que revira por dentro. Usa pouco as palavras. Ela sabe que não precisa de muitas falas. É uma mulher que sabe dos movimentos do amor e sabe também que o coração se entrega a qualquer gesto delicado quando se está sozinho”. 

A noite seguia sem pressa e a lua parecia sorrir tendo uma estrela ao seu lado. Ivan exalava a felicidade, estava inaugurando o seu site, depois de trabalhar tanto nos últimos dias. Os convidados foram chegando e ele, feliz por ter um site, conheceria também a mulher que mudou o seu irmão. Somente depois de anunciar as novidades do seu site é que ele se aproximou de Mark e Aline. Lançou nela um olhar de proteção. Gostou da moça. O seu irmão tinha sempre bom gosto, ela transmitia paz e segurança, ao contrário da Selena com seu sentimento fugaz.
— Ele está feliz, está realizando o sonho dele. – Aline disse enquanto o olhava de longe. Mark observou. Ivan caminhava por entre as pessoas com total atenção a cada um dos presentes ali.
— Sonhos... – Disse elevando os olhos para o alto. – Ele falou tanto desse sonho... – Apanhou duas taças do garçom que passava. Estreitou os olhos nela. – Qual o teu sonho? – Mark perguntou, entregando a ela uma pequena taça de champanhe.
— Meu sonho?! – A pergunta a apanhou de surpresa. – Deixe ver... Hum... – Fez uma pausa, olhou para os lados, mas antes que se alongassem os segundos voltou a encará-lo com o olhar que ele gostava de descrever. – Estudar psicologia. – Fez uma pausa. – Quero ser uma psicóloga, é isso! – Sorriu. – E você, qual é o teu sonho? – Disse alongando o “é” e com um meio sorriso esperou a resposta, sem olhar diretamente para ele.
— Tenho muitos sonhos... – Trocaram silêncios. – O mais impossível envolve você.
— Ah! É?! – Fez um gesto com as mãos, pedindo que ele continuasse.
— Te abraçar enquanto te beijo, mesmo que seja por alguns segundos... Deslizar os meus dedos pelos seus cabelos pode ser impossível, mas... Se você não quiser.
— Mas o sonho é seu... – O seu rosto se iluminou e a boca ameaçou um riso.
— Eu disse que envolve você. – Esperou ela sorrir, mas ela desviou o rosto. – Desculpe, estou apenas brincando...
Ela se escondeu no silêncio e disfarçava a falta de palavras bebericando o champanhe. O amor acontece como gotas, as gotas eram partes dela. Os olhos. Os cabelos negros e longos. As mãos que abrigavam as dele. O som da voz. Os diálogos curtos. Os pés. Avistou-os um dia. Amou-os.
— Estou contigo nesse sonho.
— Mas o sonho não é só meu?
— Não importa, já estou envolvida.
A música dominava o lugar. Ninguém escutou o som de um beijo, nem repararam nos corpos que se ajuntaram num abraço a meia luz. Ninguém sabia, o amor chegou até eles, como gotas.
— Qual a cor dos seus olhos? – Ele indagou. Por um resumido instante ela pensou nos namorados que teve. Ninguém lhe fizera tal interrogação.
— Castanhos claros. – Convicta de que encontrara o amor, Aline respondeu depois de demorar com a resposta. Descobriu que havia três coisas interessantes a serem observadas para que um relacionamento se perpetue: que os olhos mudam de cor por pelo menos três vezes ao dia; que nos aproximamos pelo brilho que há nas pessoas; e que se não permanecemos por perto, é porque não nos interessou saber a verdadeira cor dos olhos.




3 comentários:

  1. Gostei de ler. Siga em frente, Nill. :)

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  2. Para ler enquanto espera...
    O sonho acontecer;
    As coisas se encaixarem em um cantinho certo;
    A vida se ajeitar;
    Chegar a sua vez na fila de um lugar qualquer;
    Ou simplesmente:
    Para ler enquanto espera...
    O próximo livro saindo quentinho com mais desses incríveis recortes Cronificados? Contificados? ou Poetizados?
    Gostei muito desse livro,
    agora estou curiosa para ver o que vem por aí...
    Você é um Escritor de talento, meu amigo!
    Sucesso é o que desejo a você!

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