sábado, 21 de fevereiro de 2015

A HISTÓRIA DA AMIZADE


Faz um ano, eu sei. Passou de repente. Como um pulsar de olhos. Começou no sim de um sorriso gráfico e as palavras cintilaram, conectando pronomes, abrigando a terceira pessoal do plural.
Como assim, faz um ano?!
O tempo só carece da matemática quando há distâncias. O agradável conectado, esconde o tempo. Ninguém se aquieta para contar o tempo que se preenche com sorrisos, que se entrega no encanto ou na carícia das palavras.
Dois nomes, meio árabes, compõe a nossa celebração:
A mi e Z ade.
Palavra latina, escolhida para ser vinte de julho. Guarda o “A” princípio e o “Z” derradeiro do alfabeto. Separadas em sílabas, juntas no som. Enarmônicas, aqui elegida. A gente teme perder. Palavra que alarga os sorrisos, alegra o cotidiano, ilumina o respeito. Ela permite risos bobos, mas recusa brincadeiras tolas.

Um ano de coisas tantas e palavras muitas. Começou num toque de dedos. Num avistar de tela e escritas desortográficas. Os olhos liam, o pensamento via e o coração, depósito do olhar e sentir, guardava sorrindo nossas cismas. Faz um ano, sim. Nem sentimos o de repente dos meses mudando as estações.



quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

QUAL RIO ME LEVA AO MAR




               De onde venho, um homem volta de muitos lugares. Esse dizer foi meu alento, alguns segundos após pousar os meus pés na escura sala da minha habitação.
            Para alguns moradores de Cruz das Almas, vila em que nasci, era eu um menino estranho, amuado, de pouco falar e metido a besta. Outros, da parte que discordavam dessa ideia, eu apenas não jogava conversa fora e que era menino dedicado aos estudos. A metade da metade que sobrava não se posicionava. Quando opinavam, concordavam com ambas as explanações.  Havia momentos em que me dizimavam porque apareci numa reportagem de TV. Menino metido! Pensa que é artista de Hollywood. Tem o nariz tão empinado que se andar na chuva, afoga. Diziam. Em outros momentos, reportavam aos visitantes da cidade que eu era inteligente e que, por causa minha, Cruz das Almas ficou conhecida em todo o Brasil. Ligavam os vídeos e mostravam a repórter me entrevistando. A equipe de TV veio fazer uma reportagem na região. Um grupo de geólogos estava percorrendo o rio Iguaçu desde a nascente e, na minha região, buscavam saber quais afluentes tornavam-no largo e profundo. Apontei-os. Dizendo os nomes dos sete córregos que desaguavam naquele extenso rio. Em Cruz das Almas ficavam os últimos afluentes e o Iguaçu não recebia mais riachos. Tinha as águas que precisava para entregar ao mar. Os sete quilômetros de percurso eram cheios de curvas e quedas. Penso ser uma espécie de balanço para fechar contas com o mar.
            Minha mãe era mulher trabalhadeira. Lavava e passava a roupa das madames e ainda cuidava da faxina da joalheria, do armazém de roupas, da farmácia e da loja de construção; comércios de grande importância na cidade. À noite, chegava e dormia. No fim de semana cuidava da casa, não conversávamos. Sabia pelos outros algumas coisas ao meu respeito. Ela nunca disse nada sobre o meu pai. Eu caminhava nas indagaçoes. Não cabia outros desejos se não o de conhecer a minha nascente biológica.
            Tínhamos uma casa pequena na rua primeira antes da principal. Quase ninguém nos visitava. Notei a falta de visitas no dia em que muita gente foi nos visitar. Numa tarde em que eu voltava da escola, encontrei a minha mãe morta. Estendida na sala. Sob o olhar de muitos olhos. Uma descarga elétrica, vinda do ferro de passar, levou para sempre a minha mãe.
        Fui morar com a minha tia Laurinda, por duas necessidades: ter alguém para me cuidar e descobrir aos quatorze anos, ouvindo as paredes, o que ela sabia do meu pai. Depois que fixei residência ali, tia Laurinda economizava nos dizeres. Aos vinte e três anos entrei para a universidade, mas não concluí.
           Tenho quarenta e três anos, há cinco completei a faculdade e ainda não me decidi casar. Recentemente voltei a Cruz das Almas. A minha tia Laurinda partira para sempre. Deixou bens e uma carta endereçada a mim.

            23 de março 1987

                Meu querido sobrinho, João Eugênio Simon. No momento em que escrevo essa carta, penso estar nos meus últimos respiros. Não tenho tempo para te esperar. A morte me rodeia e já levou uma parte do meu corpo. O câncer é muito cruel quando chega, mas ele permite que morramos devagar e delega o tempo necessário para que possamos nos arrepender e reparar nossos erros. Sei que vive a procurar quem você é, assim, saber quem é o seu pai. Digo a você esse segredo, eu e a Juliana sua mãe não conhecemos nossos pais biológicos. Éramos gêmeas. Fomos roubadas na maternidade. Não tenho mais forças pra te dizer tudo. Procure o Anselmo. Ele sabe muito sobre você e dirá quem você deve procurar.
                                                                               Beijo da sua tia Laurinda

                    Os meus olhos ganharam águas ao fim da leitura. O silêncio que sou permite ver o silêncio que fui. Os nomes a procurar desabam do tempo em mim, rio de águas escuras, de silenciosos barrancos, agitado nas profundezas.
                   Percorrem, meus pés, pelo corredor da casa antiga. No quintal borbotam lembranças. As reminiscências vigiadas parecem de pouco tempo. Desci a rua da casa que foi minha. Meus olhos navegaram os lugares onde nunca brinquei, mas que sentei para ver as pessoas passarem. Algumas traziam seus conselhos. Se eu os praticasse, não serviria para ser mundo, mas uma ficção.  
— Esse menino nunca brinca! – Diziam uns.
— Gente amuada nunca brinca. – Repetiam outros. Como Don Quixote, eu seguia de pé.  A cabeça elevada. Ouvindo o meu ouvir.
                   Anselmo veio me encontrar na porta, trazendo no riso-metade, rabiscos tristes. Seus olhos apontaram meus fios brancos, cabelos que se recusam a ser pretos para relatar o tempo grifado em mim. Escondi-me naquele abraço pensando ser ele o meu pai. Casado há trinta e sete anos, aquele senhor nunca tivera um filho. Ponderava ser eu o fruto das suas aventuras com a minha mãe. Joana coube no meu abraço. Vi no seu rosto o alívio de quem se lavou no perdão. Não podendo dar-lhe um filho, aceitou sem rezingar as aventuras do marido. Anselmo lançou um olhar inquieto quando eu trocava notícias com Joana. Ela queria saber dos acontecidos no tempo em que estive distante.
                   Notei certo cansaço no homem que pensava ser meu pai quando saímos para caminhar. Vendera a farmácia e se aposentara, há dias reclamava de dores no peito. Joana mencionou na conversa. Ele sentou com dificuldades em uma das cadeiras que ocupava a calçada, arfando, pediu água. O dono do bar, percebendo, trouxe-lhe a água e ajuntou as demais cadeiras liberando a calçada. Não fiquei tomado de medo, me parecia natural ver um homem carecendo respiração. As pessoas foram se ajuntando, formando um círculo, alguns instantes depois se afastaram para que encostasse a ambulância. Tarde demais. Anselmo sofrera um infarto e tudo que eu precisava saber estava ligado a outro nome, Elmir, o árabe. Foi o nome que o meu suposto pai me indicara.  Palavra última.
                   O armazém de roupas ganhou uma fachada nova e uma porta de vidro. Elmir tinha os cabelos grisalhos desde que eu era menino. O tempo não alterou o seu semblante, sinto na primeira olhada ao passar pela porta. Olhou-me como um dos seus clientes. O seu proceder tocou a parte escura da minha claridade. O homem que não mudara por fora não era mais o mesmo por dentro. Modificou-se comigo quando descobriu que eu não era um filho seu e que poderia acioná-lo na justiça alegando paternidade. Qual prova? Os olhos da sociedade. Se eu dissesse ser filho, todos confirmavam. A minha mãe o namorava e frequentavam a casa de dança. Elmir me fez um cumprimento de mão e, como quem está ocupado, abriu uma gaveta e me entregou um nome, ao qual devia procurar. Frieza provoca frieza. Recebi o papel e virei as costas sem dizer cumprimentos.
                   Antonio Simão alugou a joalheria e se aposentou. Estava em viagem. Casara novamente e foi visitar a filha na Itália. Quem me entregou um nome pequeno numa folha inteira foi a sua irmã, a Dona Sabe Tudo. Seu nome verdadeiro, Irene Sampaio. O apelido é nome dado quando eu era menino.
— A tal da Irene Sampaio é uma fofoqueira, sabe tudo da vida dos outros, menos do que a filha apronta. – Dizia minha Tia Laurinda.
                   Prometendo voltar e tomar um café, despedi-me da Dona, beijando-lhe o rosto. Disse ela, após soltar as mãos da minha mão, que precisava conversar comigo. Assenti com a cabeça já me pondo a caminho em direção ao último suspeito.
                   Cecílio Ledo não foi namorado da minha mãe, mas diziam as más línguas que ele, assim como o Anselmo, se escondia com ela no horário de trabalho. Cecílio ainda cuidava da loja de eletrodomésticos, mas quem gerenciava era o seu genro. Encontrei um homem de sorriso alegre e largo num rosto oval e maxilar com cavanhaque. Andava pela loja com passos curtos e rápidos. Dos homens que procurei, quis que fosse o meu pai. Poderíamos nos divertir. Contar histórias. Poderia ser pai, eu ser filho e o tempo demorando em nós.
                   A tarde caminhou sem pressa pelas nossas recordações. Ele não mencionou o nome da minha mãe, nem da tia Laurinda, mas contou-me coisas que me abriram o entendimento. As certezas que eu tinha foram enfraquecendo, mas não escapei de mim. Como professor de história, conhecia a biografia de tantas gentes, mas não conhecia a minha. Guardei todos os receios do mundo e a figura paterna, como arabesco, adorna as salas do meu vazio. Pelas ruas minhas, estradas eu invento. Elas me levam a quem sou. E eu sou isso: nada, além de buscas e desejos de encontros.
                   Um dia depois, quando o sol já se escondia, fiz uma visita à dona sabe tudo. Ajeitei-me na graça dela mergulhando na surpresa, ela realmente sabia das coisas. Com a conversa ganhei metade do passado iluminado. Quando se joga luz num quarto escuro, partes negadas também são iluminadas. A minha mãe nunca tivera um filho biológico. Sou filho de mãe que cuida por piedade divina. Li em recortes antigos, notícias novas em jornais velhos:
                   “Criança é encontrada na lata de lixo em dia de chuva”.
                        — A sua mãe tinha abandonado o casamento. Era ela da idade de vinte e cinco anos quando o encontrou. – Disse dona Irene, após mostrar todas as fotos e reportagens sobre mim. – Ela o tomou nos braços e encheu de cuidados. Por causa de você nunca quis se casar, mas era namoradeira. – Disse, estendendo a tônica “deira”.
                   Inférteis, tia Laurinda e minha mãe.  
                 Andei voltas longas dentro de mim após deixar para trás a casa da dona Irene. Como quem se despede de um ente querido, ela chorou.
                   Dona Irene me falou dos seus pecados. Confessou que abandonara o seu primeiro filho numa cesta de lixo e que viera morar em Cruz das Almas carregando na consciência o peso da mão de Deus. Sentia ela, morando ali, o seu pecado se aliviava. Temendo maior juízo divino, casou-se e teve uma filha.
                   Sigo os dias que me arrastam. Meu passado se resume a um recorte de jornal. Quando vejo homens coletando o lixo, penso se não estão recolhendo a minha história. Voltar nem sempre é agradável. O homem vive melhor quando imagina. A realidade é peso grande para homens como eu. Não sei brincar de ser humano e tudo que sou, sou isso que o acaso fez.   

                  



sábado, 14 de fevereiro de 2015

OS TRÊS INÍCIOS.


       Quando os nossos olhos se encontraram nossos pés nem haviam tocado a esteira da escada rolante. Do alto, antes de tomar rumo, ela me olhava com olhos de encanto único. De baixo, eu era como o professor Girafales olhando dona Florinda.
Ela iniciou descer, eu iniciei subir. Ameaçamos por o pé na esteira num instinto único e nesse mesmo instinto, recolhemos o pé e voltamos a nos olhar, como quem nunca se olhou. As pessoas passavam sem invadir o alvo da nossa visão. Passavam sem perceber que havia dois olhares interditando o tempo. Ela se decidiu no mesmo tempo da minha decisão. Os pés foram alocados e o corpo se equilibrou, se adequando aos movimentos. Era certo que nos encontraríamos no meio da escada. Nossos olhos não fugiram. Nem por segundos buscamos lançar vistas ao nosso redor. A escada que subia carregava um elevado número de pessoas, a que descia contava com algumas crianças. Ela ajeitou os cabelos para um lado, depois para outro. Estava na minha direção, mas por outro caminho. Rumo a ela eu subia, contente ao saber que a veria de perto. A escada me levando a ela que descia para mim. Observei seu sorriso. Pensei nas pessoas que chegam, mas simplesmente passam. Será que eu se lembraria dos seus olhos castanhos, dos seus cabelos escuros e do seu sorriso cavando um riso meu? Nossos olhos se desviaram quando, a certa altura, a escada foi nos aproximando. Ela chegava. Nunca reparei nas pessoas que chegam. Jamais observei como as pessoas agem quando se aproximam. Também não pensei porque as pessoas se aproximam. Nem pensei em como é que se fica quando alguém que se espera vem chegando. Num chegar que traz a gente para dentro da gente e nos devolve para sorrir à vida.
Ela eu observei: escondeu os olhos, brincando com os cabelos me olhava sem me olhar. Coisas que só mulher sabe realizar.
A escada foi nos aproximando sem pressa. Encarei-a. Pude ver sua textura, sua palidez, seu batom cintilante e um anel no seu polegar direito.
Se aproximando.
Aproximados, nos olhamos como quem nunca se olhou.
            — Oi.
           — Oi – ela respondeu com um olhar que parecia me decifrar por dentro.
            A escada foi nos levando. Viro as costas para o meu rumo a fim de continuar apreciando seu encanto e percebo, ela também fica de costas, deixando-se ser levada como quem não quer mais ir. A gente se olha. Distancia-se. Eu subindo de costas, ela descendo como eu. Damo-nos as costas ao fim da escada e os nossos pés tocam o piso. Ela se vira. Nossos olhos se encontram mais uma vez, acompanhados de risos e gestos de mãos. A escada continua a sua missão. As pessoas continuam passando. Num passar que sobe e desce. A gente se perde pelos corredores.
            A lanchonete do shopping está como sempre, abarrotada. A tarde já se despede do domingo que passou devagar.
            — Oi, sou o rapaz que subia a escada.
            — Prazer – Risos – Sou a moça que descia a escada. – Sorrimos.



OS TRÊS INÍCIOS.


       Quando os nossos olhos se encontraram nossos pés nem haviam tocado a esteira da escada rolante. Do alto, antes de tomar rumo, ela me olhava com olhos de encanto único. De baixo, eu era como o professor Girafales olhando dona Florinda.
Ela iniciou descer, eu iniciei subir. Ameaçamos por o pé na esteira num instinto único e nesse mesmo instinto, recolhemos o pé e voltamos a nos olhar, como quem nunca se olhou. As pessoas passavam sem invadir o alvo da nossa visão. Passavam sem perceber que havia dois olhares interditando o tempo. Ela se decidiu no mesmo tempo da minha decisão. Os pés foram alocados e o corpo se equilibrou, se adequando aos movimentos. Era certo que nos encontraríamos no meio da escada. Nossos olhos não fugiram. Nem por segundos buscamos lançar vistas ao nosso redor. A escada que subia carregava um elevado número de pessoas, a que descia contava com algumas crianças. Ela ajeitou os cabelos para um lado, depois para outro. Estava na minha direção, mas por outro caminho. Rumo a ela eu subia, contente ao saber que a veria de perto. A escada me levando a ela que descia para mim. Observei seu sorriso. Pensei nas pessoas que chegam, mas simplesmente passam. Será que eu se lembraria dos seus olhos castanhos, dos seus cabelos escuros e do seu sorriso cavando um riso meu? Nossos olhos se desviaram quando, a certa altura, a escada foi nos aproximando. Ela chegava. Nunca reparei nas pessoas que chegam. Jamais observei como as pessoas agem quando se aproximam. Também não pensei porque as pessoas se aproximam. Nem pensei em como é que se fica quando alguém que se espera vem chegando. Num chegar que traz a gente para dentro da gente e nos devolve para sorrir à vida.
Ela eu observei: escondeu os olhos, brincando com os cabelos me olhava sem me olhar. Coisas que só mulher sabe realizar.
A escada foi nos aproximando sem pressa. Encarei-a. Pude ver sua textura, sua palidez, seu batom cintilante e um anel no seu polegar direito.
Se aproximando.
Aproximados, nos olhamos como quem nunca se olhou.
            — Oi.
           — Oi – ela respondeu com um olhar que parecia me decifrar por dentro.
            A escada foi nos levando. Viro as costas para o meu rumo a fim de continuar apreciando seu encanto e percebo, ela também fica de costas, deixando-se ser levada como quem não quer mais ir. A gente se olha. Distancia-se. Eu subindo de costas, ela descendo como eu. Damo-nos as costas ao fim da escada e os nossos pés tocam o piso. Ela se vira. Nossos olhos se encontram mais uma vez, acompanhados de risos e gestos de mãos. A escada continua a sua missão. As pessoas continuam passando. Num passar que sobe e desce. A gente se perde pelos corredores.
            A lanchonete do shopping está como sempre, abarrotada. A tarde já se despede do domingo que passou devagar.
            — Oi, sou o rapaz que subia a escada.
            — Prazer – Risos – Sou a moça que descia a escada. – Sorrimos.