quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

QUADRADA X REDONDA



        Dois homens entraram carregando uma caixa e, com delicadeza, a colocaram no chão e ficaram observando a porta de entrada. Alguns minutos depois, mais dois personagens surgiram sorrindo pela porta, dividindo o peso de uma enorme caixa. Como formigas trabalhando, os homens amontoaram vários caixotes no pátio da escola.
        No dia seguinte, vi os mesmos homens trabalhando. Desmontava e montava, montava e desmontava. Rasgavam papelões, enrolavam papéis bolhas, parafusavam, ajustavam pernas e acoplavam as bases.Assim, aqueles grandes embrulhos foram ganhando formas e se tornando mesas e cadeiras. Após dois dias sem passar pelo pátio, voltei, e para a minha surpresa, o pátio estava enfeitado. Tomado de um azul que colocava o céu nos meus olhos. As mesas alinhadas, as cadeiras posicionadas indagando minha curiosidade. Sentei em uma delas e disfarcei de mim. Apoiei os cotovelos sobre a base de uma das mesas. Havia nelas um leve macio que instigava deitar o meu rosto, me esconder da sala de aula e evitar as matérias ruins.
        Dois dias haviam se passado desde que eu me enamorava das mesas quadradas. Via naquelas mesas um lugar para sentar com os amigos e trocar assuntos diversos. Amigos do lado... de  frente... falando das coisas mais bobas do mundo.
Numa tarde sem aulas, descansava sobre uma das mesas, quando outros entregadores entraram pela porta da escola transportando enormes embrulhos e colocaram no chão da galeria. Eram mesas redondas, da cor cinza que mais se aproximava do branco. Tomado da beleza que se expalhou pela galeria, ocupei uma das mesas e me encontrei. Até dispensei o sentido de sentar com os amigos numa mesa quadrada. É que, numa mesa redonda sentamos em círculos. Gostei do imediato pensamento de que, sentado em círculos, parecemos melhor conectados na continuidade do outro.




domingo, 15 de setembro de 2019

AUTOMATISMO AMBULATÓRIO


A coisa acontecia sempre, mas foi no final da tarde de uma quinta feira que eu enxerguei o que vi. O homem, com uma bolsa de livros a tiracolo, caminhava como quem não observa o mundo. Mergulhado naqueles momentos em que todos nós temos: caminhar no automatismo. Quem nunca saiu de algum lugar com direção ao local onde mora e sem perceber, chega? Ou quando o caminho é inverso: saímos de casa e chegamos ao trabalho? Não notamos a rua, as pessoas, ou seja, não analisamos o percurso. A ciência nomeia este feito como “Automatismo Ambulatório”.
Sentado à mesa do bar, notei logo quando o homem surgiu na esquina. Se a vida é besta, meu Deus, por que um homem caminha devagar enquanto ao redor todas as coisas voam? Qual pensamento tomava a cabeça daquele professor a ponto de não ver um cachorro que foge dele, uma senhora que parou a bicicleta para que ele passasse, e o vendedor gesticulando suas cartelas de prêmios?
No momento em que o professor olhou em minha direção, fiquei de pé, gesticulei os braços e abri um sorriso. Para meu espanto, calmo e sereno, o homem voltou o rosto para o outro lado da rua. Os colegas do bar sentiram por mim o vácuo. Com aquele sentimento de quando cumprimentamos e não somos correspondidos, andei até a calçada e chamei pelo professor. Ele continuou seu destino, sem ouvir nem ver. Olhei em volta os colegas, eles já não estavam mais ligados na minha desventura.
Meia hora depois o professor me ligou querendo saber por que não o esperei no bar, na hora combinada. A hora combinada era: sairmos do trabalho e tomar uma cerveja. E ficou espantado quando eu descrevi o vácuo. Ele sorriu e perguntou onde eu estava. Desligou dizendo: estou indo aí. Dez minutos depois apareceu com um sorriso largo e uma sacola de livros na mão. Cumprimentou a todos e no mesmo tempo em que se sentou, disse: não acredito que passei por aqui e não me vi passando.
          Entre um copo e outro gastamos a tarde. A conversa sobre samba, filmes e livros não deixou que falássemos de distração, nem do ato de sonambular pela rua. Após deixar o bar, caminhei em direção a minha casa com meus livros e planos de aulas em baixo do braço. Alguns minutos depois, já em casa, o meu celular tocou. Era a minha filha. Queria saber se eu estava bem, pois passei diante dela e não a vi.


sábado, 31 de agosto de 2019

UMA IDEIA VINDA DOS PÉS

                                                                                 



        Faltavam alguns minutos para o Avião pousar e a sala de espera foi se aglomerando. Preciso dizer que, por ter uma estatura com pouca dimensão vertical, não fiz como os outros: observar a pista pelo vidro à espera da descida da aeronave. Como sabia que o meu amigo passaria pelo portão de desembarque e viria até mim, sentei-me. Um baixinho sentado onde a maioria está de pé, se limita ao movimento “Cara-Crachá” ou, enfiar a cara no celular e ficar ali “hibernando”.

        Num desses momentos em que desviamos os olhos do Iphone para que o cérebro respire outras novidades, notei algo incomum, para não dizer exótico: um casal de pés. Membros inferiores masculinos, contrariando a lógica da beleza dos membros inferiores femininos. Os pés masculinos tinham nos dedões enormes pelos negros, com unhas que iam além da carne. Chinelos amarelos em pés demasiados brancos destacavam ainda mais aqueles fios mal-ajambrados, incentivando-me a pensar que, a natureza, fez brotar naqueles dedões a cabeleira do Chico Cesar. As unhas apresentavam uma cor escura, curvada, semelhante à lua minguante, era como se armazenasse por baixo algum tipo de fertilizante.

Não precisei de imediato levantar a cabeça para observar os rostos pertencentes aqueles membros. Atentei-me aos contrastes. Um pouquinho para a direita, leveza, candura, poesia. Um movimento à esquerda, crueza, rusticidade, descuido. Um desprimor.  Os pés rosados da moça beiravam a perfeição. Cabiam delicadamente nas rasteirinhas. As unhas decoradas despertavam a candura de dedos que, de tão perfeitos, deveriam ser proibidos de pisarem no chão.

        Bem próximo a mim, o casal dono dos pés, beijavam-se e abraçavam-se constantemente como se faz no início das relações conjugais. O homem tinha boa feição e era do tipo que frequentava academia.  Pergunto-me se nas redes sociais, ao invés dos rostos, postássemos a foto dos pés. Quem se interessaria? As partes do corpo são capazes de provocarem uma atração, mas nunca ouvi dizer que alguém já se apaixonou por uma unha, por dedões com pelos armados necessitando uma boa escovada, ou por calcanhares semelhantes à terra seca no sertão nordestino.  O fato levou-me a conferir outros pés ao redor. Os que usavam sapatos escondiam suas anormalidades? Curvas delineadas? Fica aqui um mistério.

Com outros pés femininos comparei os membros da jovem. Não havia ali pés tão formosos. Diante dos pés impolidos e grotescos do moço, chegava a ser cruel com os olhos a beleza dos pés da moça. Quando o avião pousou, o casal aproximou-se do portão de desembarque. Observei seus rostos. A moça tinha feições horrenda e o rapaz um rosto-de-revista. Penso que no primeiro encontro, o encanto dela se deu do tórax para o rosto do rapaz. Ele, enfeitiçado com os magníficos quadris, apaixonou-se pelos pés da moça.         


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terça-feira, 9 de julho de 2019

INTELECTUAL PILHADO




Estudar, ser curioso, amar o conhecimento e questionar o que aprendemos têm suas vantagens: não somos massa de manobras, e podemos ser bem remunerados por isso. Mas o lado douto também apresenta desvantagens. Um intelectual um dia se casa, gera filhos e aprende que, expandir-se no conhecimento, exige sabedoria para fazer parte do mundo dos filhos, companheirizar a esposa, sentar com os amigos e se “parecer” com eles. Antes que algum deles comece a dizer: Aí, vem chegando o doutor! Agora tá metido. Não bebe mais com os amigos! Ou quando surge aquele assunto que você passou quatro anos na faculdade estudando e que o amigo do amigo por trás de um copo, (e que sabe a marca da cerveja porque o barman falou), resolve debater. Pois é. Sabemos que insistir no assunto num momento como esse é perda de tempo. Até porque não se muda opiniões ou conceitos de forma radical. 

Diferente do que acontece nas igrejas, demora-se algum tempo para instalar novos princípios no ser humano. Ainda que um pensamento possa nos tomar num segundo, custará um tempo para que se torne uma ideologia. Sei que o leitor dirá: o meu mito consegue. De cá eu não discuto a qualidade dos mitos. Não perco meu silêncio com o barulho dos outros. E um pensamento crítico demanda de muitas leituras para as mudanças de conceitos.

Voltando ao prazer e as desvantagens intelectuais, agora diante dos filhos: uma menina de treze anos que numa sexta-feira à noite, me faz sentar e acompanhá-la num episódio do seriado “Para todos os garotos que amei”. Sendo que, antes, pediu-me para escutá-la e reparar suas entonações enquanto fazia a leitura de um trecho do livro “O mundo de Sofia”. Antes do filme, já no meu colo, pede-me se eu posso doar um dos meus livros de Dostoiévski para a biblioteca da sua escola, porque as suas amigas querem emprestado quando ela terminar.

O sábado é dia de acompanhá-lo no jogo decisivo do seu time. Meu filho, com onze anos, duas vezes por semana treina basquete e pretende ser profissional. No caminho para o ginásio ele me mostra sua coleção de MCs. Antes que eu diga algum protesto ele liga o celular e já dispara uma daquelas repetitivas. No instante em que a frase se repete na sexta vez, ele abre uma janela no celular e mostra: MC Kalladão, MC Kalladin, MC S#Konteuddo e MC Cachorrão. Não foi possível ver os nomes de todos MCs porque já estávamos no pátio do ginásio e ele desligou suas preferências musicais.


No sábado à noite a TV anunciou exibir um ótimo filme. Animei assistir já que os filhos foram dormir na avó. Minha esposa, em poder do controle da televisão disse, “Já que o filme é bem tarde, assista comigo meus programas preferidos, depois eu vejo o filme com você”. E assim exerci meu companheirismo diante de Master-Chefe, novela e fábrica de casamento. Quando o “Gênio Indomável” começou, meu sono acordou. Ela dormiu. Como se todos os sonos acumulados durante anos fossem designados para aquele instante.

LL!N
zurC 

domingo, 7 de abril de 2019

NINGUÉM MANDA EM MIM



A menina nem esperou que o homem, suponho ser o seu pai, terminasse a fala e já disparou: ninguém manda em mim. O homem encarou a mulher, imagino ser a mãe, e bufou, ora seguindo a menina com os olhos, ora olhando o prato dela por terminar. Gesticulou um “o que eu fiz” para a mãe que se limitou em levantar os ombros e espalmar as mãos. A menina caminhou por entre as mesas do restaurante com o celular na mão indo de encontro a uma tomada. Achando, sentou e mergulhou no aparelho. A frase dela ecoou em minha cabeça como aquelas músicas chatas de um refrão único que o cara do lado coloca no seu celular e o som repete tanto que, mesmo a cabeça recusando, a mente canta. Nesse caso, não mandamos na mente. O senhor (imagino), pai da menina, aparentava ter cinquenta anos e o domínio das suas experiências. Atendia o celular em intervalos relativos de três em três minutos, e num desses atendimentos, pude ouvir: calma! Segura, aí! Já estou indo. Desligou a chamada, anotou alguma coisa no aparelho, olhou firme para a mulher em sua frente e disse: o chefe mandou que eu pegue o carro dele na garagem. A mulher estreitou os olhos no homem: você insistiu que eu viesse e ordenou trazer a Júlia, depois pergunta ainda: o que eu fiz? O casal fez menção de sair e a menina os seguiu sem desgrudar os olhos do celular. Com a sensação de que ninguém manda em mim, retirei meu cartão e paguei o almoço. Voltei a redação do jornal e logo escutei o diretor cobrando. Só faltava o meu texto para fechar a edição.



segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

NA QUITANDA COM GULLAR


Foi por acaso que me deparei com Gullar na livraria. Saí de lá e entrei em sua Quitanda. Tive a sensação que estava visitando novamente o MASP em São Paulo. Havia saído com a intenção de procurar por mim nas ruas, já que eu não me encontrava dentro de casa. Escapei. Sem rumo, peregrinei sem saber o que fazer ou onde parar. À minha frente, mas para a direita, uma padaria, com promoções e cafés variados.
Poderia sentar ali, me esparramar sobre a cadeira e esperar por mim, passando por uma das vias em ida e, ou volta, ou simplesmente pedalando em círculos com uma bicicleta infantil. Poderia puxar conversa com Manoel Bandeira que por muito tempo frequentou lugar como aquele e até pensei convidar o Chico para passar com sua Banda. Mas o que fiz foi virar para a esquerda e, atraído por gritos de “Vai, Curíntia!” , mirei o bar abarrotado de gente que se dividia entre cerveja e a copa São Paulo de futebol Júnior. Ali eu não estava. Nem estaria se me deixassem sentar para um papo com Gullar.
Vilhena possui alguns lugares onde eu consigo esconder de mim. Não vou revelar esse recinto para que, você que me conhece, não venha delatar o meu cantinho preferido. Distante do celular, afugentado das redes sociais, e vazio dos amigos virtuais, coube a mim se esconder do músico que, indisposto com a música, posa de cinéfilo na Flix.
O fato, isso é fato mesmo, é que caminhei por um bom tempo pelas ruas, buscando encontrar um lugar que me devolvesse para mim. Vanzolini em sua Ronda tinha a noite, eu, uma simples tarde cinzenta com cara de chuva que traz o frio. Como disse antes, sai pelas ruas sem saber onde ir, mas fui salvo pelo automatismo que me levou a uma livraria e me devolveu para mim. No meio de tantos livros sorrindo, abri um riso daqueles que espanta Cem anos de Solidão, escolhi um Gullar, andei com ele até um bar vazio, e numa mesa discreta, me fiz existir na Alquimia da sua Quitanda.