SERGIO PORTO, conhecido também como
STANISLAW PONTE PRETA, nasceu no dia 11/01/1923 em Copacabana Rio de Janeiro e
faleceu no dia 29/09/1968. Autor de textos carregados de humor e com uma boa
dose de ironia, o escritor, cronista, compositor, jornalista e radialista,
deixou sua marca na literatura brasileira. No ano da minha 4ª série, no livro
didático de língua portuguesa encontrei uma das suas criações, a crônica A
VELHINHA CONTRABANDISTA, anos mais tarde voltei a desfrutar dos belos textos
desse autor e estou postando aqui outro texto maravilhoso, não deixe de ler.
Ah, quer dizer, não deixe de rir.
O GRANDE MISTÉRIO
Há dias já que buscavam uma explicação para os odores esquisitos que vinham da
sala de visitas. Primeiro houve um erro de interpretação: o quase imperceptível
cheiro foi tomado como sendo de camarão. No dia em que as pessoas da casa
notaram que a sala fedia, havia um soufflé de camarão para o jantar. Daí...
Mas
comeu-se o camarão, que inclusive foi elogiado pelas visitas, jogaram as sobras
na lata do lixo e — coisa estranha — no dia seguinte a sala cheirava pior.
Talvez alguém não gostasse de camarão e, por cerimônia, embora isso não se use,
jogasse a sua porção debaixo da mesa. Ventilada a hipótese, os empregados
espiaram e encontraram apenas um pedaço de pão e uma boneca de perna quebrada,
que Giselinha esquecera ali. E como ambos os achados eram inodoros, o mistério
persistiu.
Os
patrões chamaram a arrumadeira às falas. Que era um absurdo, que não podia
continuar, que isso, que aquilo. Tachada de desleixada, a arrumadeira caprichou
na limpeza. Varreu tudo, espanou, esfregou e... nada. Vinte e quatro horas
depois, a coisa continuava. Se modificação houvera, fora para um cheiro mais
ativo.
À noite, quando o dono da casa chegou, passou uma espinafração geral e, vitima
da leitura dos jornais, que folheara no lotação, chegou até a citar a
Constituição na defesa de seus interesses.
— Se eu pago empregadas para lavar, passar, limpar, cozinhar, arrumar e
ama-secar, tenho o direito de exigir alguma coisa. Não pretendo que a sala de
visitas seja um jasmineiro, mas feder também não. Ou sai o cheiro ou saem os
empregados.
Reunida na cozinha, a criadagem confabulava. Os debates eram apaixonados, mas
num ponto todos concordavam: ninguém tinha culpa. A sala estava um brinco; dava
até gosto ver. Mas ver, somente, porque o cheiro era de morte.
Então
alguém propôs encerar. Quem sabe uma passada de cera no assoalho não iria
melhorar a situação?
-- Isso mesmo — aprovou a maioria, satisfeita por ter encontrado uma fórmula
capaz de combater o mal que ameaçava seu salário.
Pela
manhã, ainda ninguém se levantara, e já a copeira e o chofer enceravam
sofregamente, a quatro mãos. Quando os patrões desceram para o café, o assoalho
brilhava. O cheiro da cera predominava, mas o misterioso odor, que há dias
intrigava a todos, persistia, a uma respirada mais forte.
Apenas uma questão de tempo. Com o passar das horas, o cheiro da cera — como
era normal — diminuía, enquanto o outro, o misterioso — estranhamente,
aumentava. Pouco a pouco reinaria novamente, para desespero geral de empregados
e empregadores.
A patroa, enfim, contrariando os seus hábitos, tomou uma atitude: desceu do
alto do seu grã-finismo com as armas de que dispunha, e com tal espírito de
sacrifício que resolveu gastar os seus perfumes. Quando ela anunciou que
derramaria perfume francês no tapete, a arrumadeira comentou com a copeira:
— Madame apelou para a ignorância.
E salpicada que foi, a sala recendeu. A sorte estava lançada. Madame esbanjou
suas essências com uma altivez digna de uma rainha a caminho do cadafalso.
Seria o prestigio e a experiência de Carven, Patou, Fath, Schiaparelli,
Balenciaga, Piguet e outros menores, contra a ignóbil catinga.
Na hora do jantar a alegria era geral. Nas restavam dúvidas de que o cheiro
enjoativo daquele coquetel de perfumes era impróprio para uma sala de visitas,
mas ninguém poderia deixar de concordar que aquele era preferível ao outro,
finalmente vencido.
Mas eis que o patrão, a horas mortas, acordou com sede. Levantou-se cauteloso,
para não acordar ninguém, e desceu as escadas, rumo à geladeira. Ia ainda a
meio caminho quando sentiu que o exército de perfumistas franceses fora
derrotado. O barulho que fez daria para acordar um quarteirão,quanto mais os da
casa, os pobres moradores daquela casa, despertados violentamente , e que não
precisavam perguntar nada para perceberem o que se passava. Bastou respirar.
Hoje pela manhã, finalmente, após buscas desesperadas, uma das empregadas
localizou o cheiro. Estava dentro de uma jarra, uma bela jarra, orgulho da
família, pois tratava-se de peça raríssima, da dinastia Ming.
Apertada
pelo interrogatório paterno Giselinha confessou-se culpada e, na inocência dos
seus 3 anos, prometeu não fazer mais.
Não fazer mais na jarra, é lógico.
(Stanislaw Ponte Preta)