domingo, 15 de setembro de 2019

AUTOMATISMO AMBULATÓRIO


A coisa acontecia sempre, mas foi no final da tarde de uma quinta feira que eu enxerguei o que vi. O homem, com uma bolsa de livros a tiracolo, caminhava como quem não observa o mundo. Mergulhado naqueles momentos em que todos nós temos: caminhar no automatismo. Quem nunca saiu de algum lugar com direção ao local onde mora e sem perceber, chega? Ou quando o caminho é inverso: saímos de casa e chegamos ao trabalho? Não notamos a rua, as pessoas, ou seja, não analisamos o percurso. A ciência nomeia este feito como “Automatismo Ambulatório”.
Sentado à mesa do bar, notei logo quando o homem surgiu na esquina. Se a vida é besta, meu Deus, por que um homem caminha devagar enquanto ao redor todas as coisas voam? Qual pensamento tomava a cabeça daquele professor a ponto de não ver um cachorro que foge dele, uma senhora que parou a bicicleta para que ele passasse, e o vendedor gesticulando suas cartelas de prêmios?
No momento em que o professor olhou em minha direção, fiquei de pé, gesticulei os braços e abri um sorriso. Para meu espanto, calmo e sereno, o homem voltou o rosto para o outro lado da rua. Os colegas do bar sentiram por mim o vácuo. Com aquele sentimento de quando cumprimentamos e não somos correspondidos, andei até a calçada e chamei pelo professor. Ele continuou seu destino, sem ouvir nem ver. Olhei em volta os colegas, eles já não estavam mais ligados na minha desventura.
Meia hora depois o professor me ligou querendo saber por que não o esperei no bar, na hora combinada. A hora combinada era: sairmos do trabalho e tomar uma cerveja. E ficou espantado quando eu descrevi o vácuo. Ele sorriu e perguntou onde eu estava. Desligou dizendo: estou indo aí. Dez minutos depois apareceu com um sorriso largo e uma sacola de livros na mão. Cumprimentou a todos e no mesmo tempo em que se sentou, disse: não acredito que passei por aqui e não me vi passando.
          Entre um copo e outro gastamos a tarde. A conversa sobre samba, filmes e livros não deixou que falássemos de distração, nem do ato de sonambular pela rua. Após deixar o bar, caminhei em direção a minha casa com meus livros e planos de aulas em baixo do braço. Alguns minutos depois, já em casa, o meu celular tocou. Era a minha filha. Queria saber se eu estava bem, pois passei diante dela e não a vi.