quarta-feira, 26 de abril de 2017

OLHANDO TÁXI



Sou como as notas musicais, mas não tenho oitavas. Sigo o destino por escalas invisíveis. Meu rumo quem aponta são os meus dedos. Depositei a minha infância dentro de uma caixa grande posicionada no meio da sala.
Ontem eu voltei.
O piano ainda está no meio da sala, à espera que meus dedos devolvam o músico que deixei escapar. Tenho a impressão que estamos sempre à espera. Saímos, damos uma volta e retornamos nos mesmos lugares. Muitos desses lugares, em torno de nós mesmos. Todas as viagens e voltas se dão em nosso redor, ainda que os nossos olhos e pés tocam outros espaços geográficos.
Estômago vazio.
Meus olhos vagam pela rua e retornam seduzidos pelos movimentos rodoviários. O homem do restaurante não me reconhece, deixa ficar por ali e todos os dias traz alguma comida. Tenho barbas longas, cabelos desgrenhados e há cinco dias não sei o que é um banho. Uma noite na Alemanha, enquanto aguardava a minha apresentação, ouvi do organizador do evento, “todos nós somos mendigos, pois em algum momento da vida mendigamos o que todos os homens buscam: atenção. Seja em estado da graça ou da miséria”. Naquela noite mendiguei atenção em forma de aplausos. 
Do lugar onde estou percebo melhor o movimento dos táxis. Grafo em minha mente a figura dos três homens que ali trabalham. O calvo de rosto quadrado está sempre com um cigarro aceso, olhando para ambos os lados, sem pressa no olhar. O baixinho usa um jaleco branco e, na maioria das vezes, aguarda com as pernas cruzadas, balançando um dos pés, ziguezagueando a cabeça.  O terceiro se parece com o cara quadrada. Olha insistentemente o relógio no braço direito, caminha de um lado a outro e não faz corridas como os demais taxistas. Aparece ali no turno da tarde. Sua corrida acontece em função de uma única passageira. Uma mulher negra, cabelos com muitos caracóis. Belas curvas num 1,70. Suas luxuosas vestes não se repetem. Após abrir a porta e acomodá-la, o jovem motorista veste o terno, entra no carro, bate a porta e se vai.
O retorno acontece duas horas depois. A bela mulher desce, cumprimenta carinhosamente todos ali e desaparece em direção ao shopping. O mesmo horário em dias seguidos me prende.
O dono do restaurante levanta vista para a rua, o menino da entrega não é visto. O homem volta os olhos para mim. Com as mãos cheias de panfletos, se aproxima. Seu olhar busca lembranças. Te dou comida, mas preciso que faça um trabalho pra mim! Digo sim com um meneio. Ele para os olhos em meu rosto. Repito o sim com um meneio e aponto a minha roupa. Tudo bem. A gente resolve isso depois. Diz, entregando-me o maço de papel. Leio uma folha. Não é certo! O que não é certo? Mostro o panfleto e aponto a minha roupa. Ele sorri e pede para segui-lo.
No horário de sempre a vejo se aproximar do táxi. Duas horas depois a vejo descer do táxi. Seus olhos param em minha direção. Vejo o riso que abre o meu sorrir. Sarah Santos, a Sassá, me reconhece.
Sassá, minha professora de piano escuta a minha história e me convida para ir a sua escola. Depois de algumas horas entre salão e lojas, ela me oferece o piano. Meus dedos deslizam pelo teclado. Volto a ser gente, meus dedos devolvem meu rumo.
Todos os dias no mesmo horário, a minha professora sai. Tenho vontades de saber onde ela vai. Depois de um tempo convenço o motorista a dizer com quem ela está se encontrando. O taxista disse que eles não vão a lugar nenhum. A professora paga para andar pela cidade enquanto lê um livro, mas que ele não pode revelar o nome do livro.