sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

 


CONVERSANDO COM OS SAPATOS




            Ele tinha os cabelos desgrenhados, uma mochila nas costas e uma porção de livros nas mãos. Observou por um instante o homem de cabelos brancos, dentro de uma camisa de mangas-longas na cor azul sentado atrás de uma extensa mesa com apenas um bloco de anotações e um par de canetas em cima. O homem atrás da imensa mesa o cumprimentou com um movimento de cabeça e fez um gesto largo com a mão direita pedindo para que se sentasse. Os minutos seguintes foram de silêncio. Os olhos do psiquiatra, de tão precisos, pareciam peneirar a figura do homem despenteado à sua frente. Não vendo reação de fala no seu paciente, o médico quebrou o silêncio. “Então, senhor Danilo!” O paciente apenas abaixou os olhos. Não vendo resultado em seus gestos, o psiquiatra, insistiu: Então, me conta como o senhor está hoje. O homem permaneceu de rosto inclinado mirando o fundo do vaso que protegia uma Rosa do deserto. Uma planta que, Danilo já conhecia a história. Uma paciente presenteou o médico com aquela rosa e desde então a funcionária se encarregava de levá-la para dentro no horário de atendimento pela manhã e, na parte da tarde a colocava para fora do escritório. Sem pressa, o psiquiatra permaneceu em silêncio e sentiu alívio quando o paciente começou a falar.

De manhã a gente acorda estranho. Os olhos abrem, ou quase abrem, e a gente demora despertar de fato. É como se o corpo reconectasse ao espírito, ou fizesse um download da alma que, durante o sono, decidiu tirar uma folga, visitar o desconhecido, dialogar com o oculto. Penso que a noite também acorda aos poucos. Falo da noite porque eu durmo a noite, mas isso é válido para os que exercem seu descanso durante o dia e trabalham a noite. O encontro dos períodos também acontece lentamente. Novamente me refiro a passagem da noite para o dia. Não há invasão. O dia vai preenchendo com sua claridade os espaços que a noite vai deixando. No entardecer o fenômeno é inverso: o dia cede seus claros para que a noite tinge de escuro seus vazios. Somos esse efeito, fenômeno de passagens. Pequenos vales que se alternam durante a existência. Não percebemos, mas somos escuros num instante, e quase no mesmo instante somos claridade. A natureza vai tomando forma, a gente vai retomando o corpo. E vai acordando. Sentindo o mundo. Sei lá. Acho que sentindo a vida que sempre recomeça depois de um bom sono.

            Entrei na sala dos sapatos afim de escolher um par deles para ir pro trabalho. Separei três pares diferentes. Dos três, todos precisavam combinar com minhas vestimentas. Coloquei os sapatos em ordem. Desconfiei do jeito deles. Primeiro, não aceitaram a ordem. Ajeitava-os e um pé deles protestavam, ficando de bruços, sabe? Assim, de boca pra baixo. Sem olhar para o psicólogo, repetiu os gestos com a mão covada e palmas apontadas para o chão. Ajeitava um e o outro tombava. Logo entendi. Ninguém queria sair. E tentavam, do jeito deles, comunicarem comigo. Era a minha ordem, não a organização deles.  A minha vontade não era a vontade deles. As leis consistiam em, de acordo com quem era mais escolhido. Como os tênis eram mais solicitados, ganharam os tênis. Os mocassins eram para as sextas e sábados. O All star para ocasiões em que a roupa combinava... já disse isso né? O psiquiatra fez um gesto pedindo para continuar.

            Quando eu os coloquei em ordem, um deles me olhou diferente. Olhar de sapato é estranho. Parece furar. Como um punhal rasgando as vísceras. Não to te assustando, né? O psiquiatra repetiu o mesmo gesto. Olhar de sapato acende mil perguntas dentro da gente. Afinal eles passam o dia inteiro guardando nossos pés. E a gente pisa em cocô, pisa na lama, pisa até... ah! Deixa pra lá... o senhor já escutou um sapato falando? A voz deles é calma... dá vontade de ficar ouvindo. Como se ouve uma música clássica. Vendo que eu não tinha planos para sair, mas precisava sair, afinal eu tinha que vir aqui. Danilo se ajeitou na poltrona e olhou os sapatos. É... eles estão calados. Não dá pra ouvir a voz deles, mas aposto que estão conversando um com outro. Sabe, doutor? Sentindo o olhar estranho deles fiz uma pergunta... uma pergunta... uma pergunta a eles... o senhor entende? O psiquiatra fez movimentos circulares com as mãos incentivando-o a continuar falando.       

            Quem quer sair comigo hoje? Perguntei. Todos falaram ao mesmo tempo. Pedi silêncio e que falassem um de cada vez. All star se prontificou a dizer. E disse que o que ia dizer era o dizer que todos queriam dizer. Ouvi o pé direito, em seguida o pé esquerdo: Se você não quer ouvir o que é pra ouvir então vai ouvir do jeito que a gente gosta de ouvir e se você ouvir da forma certa, vai gostar de ouvir, porque o que dizemos é bom para ouvir. All star usou tanto o verbo ouvir que me confundiu a compreensão. Disse em seguida: quando estamos de folga, preferimos os cordões soltos, ou pelo menos frouxos, queremos liberdade sem apertos. Disse a eles que os cadarços eram muito compridos e que se eu tivesse que recolocá-los demoraria muito tempo. Pé direito riu, aquela risada de tênis sarcástico. Em seguida disse: Entendi. Você não gosta de perder tempo com a gente, né? Eu nada disse, mas fiquei pensando na “fôrma” deles. Em seguida ergui-os diante dos meus olhos, um pé em cada mão, e falei com voz e gesto de amor: Olha, vocês nasceram para ter cadarços longos, se tivessem apenas um cordãozinho, seriam estranhos. Eles fizeram cara de: “entendi”. Coloquei-os na sapateira grudada na parede. Eles mostraram rosto de quem ficou feliz por conhecer a si mesmos. 

            Olhei para os Mocassins. Havia três pares, marrom, preto e vermelho. Como bailarinos, eles falavam e se moviam para um lado e para outro. Então o par marrom tomou a frente:  pé esquerdo empurrou pé direito que disse com calma na fala: Sobre o que você disse, queremos saber: Você vai pisar na gente ou vamos sustentar seus passos hoje? Eles me apertaram com a pergunta. Não sei muito de filosofia, mas como estava com a cabeça leve, achei melhor dizer que eles iam sustentar meus passos. Pensei a dor doída que um sapato sofre. Além de sustentar todo nosso peso, são eles que protegem nossos pés. Fechei meus olhos, e sem olhar coloquei os outros sapatos em fila. O sapato social disse com olhar de culpa: ontem em masquei os seus pés, mas não foi culpa minha, ta. Seus pés estavam inchados. Me falaram que é culpa de alguma coisa que você anda bebendo. Consultei outros sapatos, me contaram que vocês bebem umas coisas e por causa disse os pés incham. É bebida alcóolica, ou algum remédio? Você já reparou que tem dias que não cabemos nos lugares... nas coisas... nas conversas... mesmo elas sendo feita para nós? Puxei a cadeira da mesa do computador e fiz sinal para que o continuassem falando. Ele pediu desculpas por falar aquilo, e disse que precisava dizer... para se sentir um sapato... social. Para ele o social vem de sociedade e a sociedade é que faz melhorar a convivência. E que eles ficavam pensando como seria uma conversa sapatual numa festa de mulher: Penso que sapato de mulher não tem tempo para implicar com a cor e o modelo de outro sapato. Estão muito preocupados com o equilíbrio e o peso das suas donas. Elas pensam que é estética, mas na verdade, precisamos mesmo é sermos resistentes. Sendo guardiões dos pés femininos a concorrência é maior, preferia ter nascido para masculino. Homens usam poucos sapatos. A manhã apressava a minha vinda aqui, doutor. Mas eu estava aprendendo com meus sapatos.  

Olhei o relógio. Tinha tempo. Sapato social me observou olhando o relógio e continuou. Viu? Você preocupado com o tempo e nós preocupado com o conforto dos seus pés. Como quer uma conversa se ta sempre com pressa? Encarei ele nos olhos. Nos olhos, sabe. Não era intimidação. Era vontade de ouvi-lo. Retirar dele tudo que eu pudesse saber. Ele sapateou para trás e disse: não perca tempo comigo. Você precisa ouvir os outros. Verdade. Eu precisava ouvir os outros. Encarei o Sapato-bota. Fiquei sabendo naquele instante que era o mais bonito e combinava com meu estilo roqueiro.

 Ele se prontificou: Olha, não te protegi quando você escorregou naquele piso. Mas, já reparou que precisamos estar atentos aos lugares onde pisamos? As mulheres sabem disso. Quando usam salto enormes, sabia? Olhei-o com cara de “todo-dia-eu-piso-ali”. Ele notou. Percebeu minha cara de sapato amassado. Ali é escorregadio, viu. Meu solado não foi feito para aquele tipo de lugar. Você já devia saber que, os mesmos lugares, escondem imprevistos que nos pegam de surpresas. Escorregar não é culpa dos sapatos. Fiquei com vontade de argumentar dizendo que somos treinados ... educados a andar de cabeça erguida e que isso faz com que não olhamos o chão que pisamos, mas deixei-o falar. É da pessoa que, desatenta, anda, sem prestar atenção ao chão que está pisando. Os mesmos lugares nunca são os mesmos. Há neles. Sinto seus pés. São pés de um homem de quarenta anos. Fiquei irritado. Perguntei. Como sabes que tenho quarenta anos? Seus pés são cascudos. Ei! Relaxa. Nós sapatos conversamos com outros sapatos. Pés de jovens são mais macios. E você já devia saber que nunca aprendeu a andar. Aos quarenta anos você ainda tropeça. Tropeçar não é culpa nossa, tá. A gente apenas protege pra não rasgar os dedos. Lembra daquela escada rolante? Era eu... o segurança dos seus pés. Mas não foi culpa minha se sua cabeça não pensava na escada rolante. Viu, você tem quarenta anos e não aprendeu a andar.   

            Fazia sentido o que eu ouvi, doutor. Dias atrás enfiei meu dedinho no tapete da sala. Caí como uma jaca no chão. Eu estava descalço. E passava ali todo momento para ver televisão. O tapete estava como sempre: bem arrumado. Eu descalço... Eu disse descalço já, né? O psicólogo repetiu o gesto de continuidade. Eu descalço, desiquilibrado de atenção, desamontoei no chão. Como uma jaca. Acho que... faz sentido... o que o sapato me disse. Houve um silêncio na sala e o psiquiatra continuou firme sem quebrar a pausa. No meio dessa toda discussão a Botina interviu: Em todos os lugares que você – fiquei sabendo – que você escorregou eu já passei. Nunca te deixei sem equilíbrio... melhor dizendo... nunca deslizei. Mas entendo que não é todos lugares que a gente se encaixa. Ah, os outros sapatos podem discordar dizendo: mas já vimos irmã sua nos pés do homem que leva verduras pra cozinha. Explico. Só de passagem a gente cabe. Mas não vejo nenhum de vocês caminhando entre os canteiros de verduras na chácara. Olhei todos os sapatos... como se tivesse varrendo com os olhos. Todos se renderam à fala da Botina. Ela fez entender que, precisamos compreender, doutor. O fato de estarmos num lugar não quer dizer que pertencemos ao lugar. O psicólogo olhou o relógio. Encarou o Danilo por uns instantes: a gente retoma essa conversa na próxima quinta-feira, tudo bem? Ok. Quinta-feira, doutor eu conto sobre a exigência dos tênis. Eles são do mesmo modelo desses que o senhor está usando, mas não são vermelhos.

 


sexta-feira, 9 de agosto de 2024


UM JEITO DE NUNCA SER ESQUECIDA

            Em uma manhã de quinta-feira, como sempre, agitada. No pátio da escola, havia alguns alunos fazendo tarefas e conversando altos assuntos. O professor os deixou ali para sair um pouco do ambiente “sala de aula” e fazer com que eles produzissem um pouco mais. As mesas espalhadas recebiam cada uma um grupo de quatro alunos com seus materiais espalhados. Ao passar por eles afim de resolver detalhes na secretaria, uma aluna disse entre sorrisos e altas risadas:

Professor, você tem balinhas? Olhei para aquele grupo e como não pretendia invadir a aula do professor de ciências, disse:

            Hoje não tenho, se tiver estão na mochila. Escutei um, aaahhhhh!”. Eu tinha balas para quatro pessoas, o problema é que num grupo de trinta e dois alunos, todos iriam querer. Quando retornei em direção à minha sala, entreguei para o grupo dela dizendo:

            As balas são meu almoço. Todos do grupo riram e receberam balinhas de café. Voltei então a minha sala, encontrei os papéis que eu precisava, e retornei à secretaria. Eis que encontrei chorando a menina que pediu balinhas. As pessoas do grupo sorrindo dela. Enquanto chorava, também sorria como quem chora e ao mesmo tempo sorri de felicidade. Não era o caso da Adrielen, ela chorava por causa da minha expressão: as balas são meu almoço! Ela ria muito e chorando, devolveu a bala. Desculpe, tio... eu não sabia que era seu almoço.

Eu sem entender o que estava acontecendo quis saber do grupo, já que ela não conseguia falar. Percebi que somos capazes de chorar-sorrindo, mas não sabemos muito desabafar enquanto choramos.

             O meu coração deu mil voltas em volta de mim mesmo ao ver tanto choro misturado a sorrisos numa única pessoa só porque minhas palavras eram costumeiras, já que sempre expressei dizendo que as balas “são para mim um almoço”. O fato é que as balas me tiram a fome, mas minhas palavras não pensadas, podem causar transtornos. Uma menina do grupo foi quem me explicou o que estava acontecendo. Doeu saber, ou “ressaber”, que a sensibilidade pode ser demonstrada de várias formas e de um jeito que não sei perceber. Mas agora sabendo que “as balas de café são meu almoço”, não preciso contar para ninguém, mas posso falar de quem ri enquanto chora porque uma pequenina bala pode ser o almoço de alguém.

     


 

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

 




PELO MEIO DO CAMINHO

        Uma frase escrita no muro:

“Perto do lugar em que nunca estive há um grito de lembranças: minha saudade é o grito”.

 O muro já desbotado ainda sustentava as letras que davam sinais de estarem escritas há muito tempo. A rua era o caminho de ida para o meu trabalho e de volta à minha casa. Não sei falar quanto tempo fazia o mesmo caminho. Penso que a rua já me tornou: lugar de passagem... e, tempo. Não sei dizer o que me levou a perceber a frase. A bem da verdade, não sei afirmar o que me fez ver o muro. Não estamos acostumados observar os caminhos pelos quais passamos. Continuei meu trajeto com a frase ecoando em minha cabeça e vi: as lembranças se faziam naquele momento por meio de rostos que eu conhecia há tempos, mas que nunca houve sequer uma aproximação. Digo: rosto de pessoas que eu conhecia por freqüentar o mesmo trajeto. Rostos que conheço quando a cidade ainda era um simples lugar do interior cujas ruas ainda eram de chão e os ventos brincavam de roda com a poeira.

        Numa das manhãs acostumadas do meu itinerário vi um homem com os cabelos brancos. Lembrei-me dele quando éramos meninos. A gente frequentou os mesmos lugares: a praça, a catedral e os campos de futebol espalhados aos arredores da cidade. Apesar de nos esbarrarmos em ato de estada, nunca conversamos. Observo-o passando por mim. O menino, agora homem de cabelos brancos, trabalhava ainda na mesma oficina? Ele me olha como alguém que me conhece, mas que nunca se aproximou. Eu, como ele, conhecido de infância, mas distante de conversas, por um momento questionei meus cabelos brancos. Eu mudei de trabalho tantas vezes, mas não mudei as minhas ruas. Todas as manhãs, nossos horários eram os mesmos. Trabalhos diferentes, caminhos iguais. No tempo éramos semelhantes, suponho que nascemos na mesma cidade, no mesmo ano. Talvez em dias parecidos. Ele se vai. Se esconde dentro da oficina, com sua bicicleta desbotada. Deixando desbotada a minha inquietude.


quinta-feira, 24 de junho de 2021

BARQUINHO DE PAPEL

 


Era uma simples folha de papel que tinha virado rascunho. Penso que nem tudo nasceu para seguir em uma única direção. Ser totalmente do mesmo jeito não cabe no ato de “existir”. Sou como Heráclito sentindo o tempo diante de um rio. O tempo é uma esquina. A gente dobra e sem perceber depara com um cenário novo, numa rua nova, no meio de pessoas que nunca vimos, mas que imprime em nós seu olhar, e nos força a caminhar mais rápido ou devagar.  Faz a gente mudar de lado e até mudar algumas coisas, dentro da gente.

O local de trabalho era ocupado por quatro pessoas em uma sala como todas as salas de um escritório: computadores, papéis, muitos papéis. No meio dos assuntos aleatórios, observei uma menina concentrada, com uma folha de papel entre os dedos. Era uma folha para rascunho, uma folha cuja serventia a muito tempo  deixara de ter. Aquela folha tinha cumprido sua travessia. E a travessia estava em conter escrito nela as informações necessárias a uma etapa de tempo. A folha não tinha mais espaços para mais escrita. Nem na frente nem no verso cabia qualquer rabisco que fosse de uma informação capaz de alguma utilização.

Envolvido nos assuntos aleatórios, não deixei de observar as mãos hábeis da menina concentrada. Fui vendo a folha desaparecendo, se diminuído a cada movimento dos dedos dela. Eram dobras e mais dobras e dobras. Pensei depois no quanto nos dobramos, para ser o que precisamos ser. Como aquela folha de rascunho eu também estava sem espaço. Talvez os anseios tenham grudado meus olhos em coisas que não preciso. De repente as minhas escolhas plantou em meu terreno árido coisas que só nascem e frutificam em solos férteis. Ou então meus desejos por não respeitar o tempo me encheram de pensamentos que já não cabem em mim.

Pensei no tempo das folhas. Se elas não estão num livro, num arquivo, ou protegidas, elas desaparecem no tempo. Também ponderei a travessia de uma folha. Elas são úteis. Depois vêm outras folhas, outras mensagens, outras serventias. Arrisquei a pensar que aquela folha teve seu instante de sorte ao ser recolhida por mãos hábeis.

 

Sobre um descanso dos meus olhos, aquela folha virou um barquinho.

 

 A menina me presenteou com o Barquinho, dizendo: agora você pode velejar por aí... Desde então velejo dentro de mim. Mas na verdade sinto ser o barco: todo instante sendo construído por pessoas magnificas.




domingo, 7 de fevereiro de 2021

PANDEMIA EM TEMPO DE LEITURAS

 


 

Depois de um tanto faz escrachado nos meus aborrecimentos, só restou sentar-me na varanda e junto com o meu cachorro, olhamos a chuva cair.

Eu tinha nas mãos um livro que falava do tempo.

Meu cachorro parecia tentar compreender cada gota que escapulia da beira do telhado. Pensei: É... a pandemia está me fazendo perceber o que há tempo deixei de fazer. Sentar num momento de chuva forte, na varanda da casa, com o meu cachorro, até faço com frequência, mas sentir a chuva derramar sobre o meu vazio um pouco de poesia molhada, isso deixei.

Meus dias ocupados demais agora deram lugar a uma calma estranha, um estar que machuca, um falta que “dói distâncias”.

Olho as flores. Elas sorriem com a chuva e dançam com o vento. As flores bailam. Acho que a dança é uma forma de louvor pela chuva que as tocam, abraçam e as beijam. Acho que o dançar delas é uma forma de aleluia por saber que as nuvens utilizam a chuva como mãos para tocá-las.

Eu agora escrevo.

E volto num antes que eu fui.

Escrevo usando caneta e papel. Dei um descanso para o Notebook. A TV me enoja e..., cansei dos filmes. Também não quero notícias que de tão “dizidas” soam como se não fossem passar.

Mas passará.

A chuva cai, meu cachorro me olha e sorri com a cauda. Retribuo com um afago em seu pescoço.

Volto para minha folha de papel.

Volto para minha caneta.

Volto até a minha primeira série: quando a professora segurou a minha mão e me ensinou a fazer a letra A, “na folha de um caderno”.

Com gosto de primeira série, segurando a caneta – como se fosse o lápis que a professora apontou tantas vezes – eu encaro uma folha em branco.

Devido ao isolamento por causa da Pandemia, as palavras saem amargas.

Tento amenizá-las com uma dose de “poética” e sinto o gosto da primeira alegria quando uma professora me ensinou a desenhar as letras.

A folha em branco dá lugar a uma conversa.

A caneta é quem media a conversa, assim como as nuvens usam a chuva para mediar o diálogo que faz as flores sorrirem.

Em tempo de Pandemia, que o isolamento não me escureça por dentro. Quero ver o sorriso do meu cachorro enquanto a chuva cai, quero pensar na quantidade de pessoas vou poder abraçar: quando a tempestade passar.

 



quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

A MENINA QUE NÃO CABIA NO MUNDO

 

Livro de contos e crônicas







O FRUIR LITERÁRIO EM A MENINA QUE NÃO CABIA NO MUNDO

 

A nostalgia de um “mim” perdido no espaço-tempo, a peregrinar por aí “sem saber o que fazer ou onde parar”, inunda-me cada vez que viro a página desta pequena caixinha de mundos imiscíveis e a um tempo homogêneos que tenho nas mãos.

Sim.

Finalmente tenho em meu poder o tão esperado exemplar: A MENINA QUE NÃO CABIA NO MUNDO. E, como em Felicidade Clandestina, sigo adiando o prazer de devorar os contos que aqui figuram. 

As personas nesta obra se apresentam de forma tanto única quanto comum e pergunto-me: Por que me encaixo perfeitamente em cada um desses encantadores enredos?

Um universo de conhecimento despretensioso mora aqui e quando meus olhos passeiam pausadamente pelos rincões da página, sinto-me roçar a existência de Clarice ou de Cecília nesse adorável limiar entre a prosa e a poesia.

Pensamentos de um saber filosófico profundo, colhidos na tecitura dos contos, habitarão para sempre a memória “das minhas retinas”.

A saber, através destas linhas pude revisitar “meus escombros sem ao menos enviar-me um aviso” e entender, finalmente, que “as coisas que mais doeram foram as que eu sustentava achando que não ia passar; quando as deixei sem sustento, passou”.

Passou e ensinou-me que às vezes pode até nos faltar alimento ao organismo. Nunca, no entanto, ao intelecto. Devemos ter sempre à disposição “uma máquina de fazer pão” e livros. Muitos livros. Pois “livros são ótimos para proteger a cabeça”.

Confesso que em alguns momentos “meus olhos ganharam águas ao fim da leitura”. Como gotas as palavras constantemente “rasgam minhas entranhas” e vão regando meus jardins internos que por muito tempo quedaram ressequidos e desabitados. Visto que “as flores murchavam e os canteiros precisavam de uma reforma” na ânsia de encontrar num instante ímpar o maravilhoso fruir do texto!

Nill Cruz logra, em suas composições, jogar com as palavras como em tempos idos brincavam os meninos com “bola, papagaio, pião”!

Eis a obra que eu aguardava para alargar meus horizontes literários e estabelecer meu plano de fuga da realidade. Afinal, não há nada como “a paz dos livros” “para aliviar as angústias”, pois “o homem vive melhor quando imagina. A realidade é peso grande” demais.

                                  

Uma resenha de:

Jaquelini Silva Brito de Jesus Porfírio

sexta-feira, 17 de julho de 2020

CURT'aS PALAVRAS