Acendeu a luz. A janela era como um quadro escuro, tamanha a
escuridão do lado de fora. A cabeça girando ainda pelas conversas que ouvira a
respeito de si mesmo uma hora antes. Minuciosamente repassou em sua memória
tudo que lhe fora falado. E se ele fosse o que as pessoas falavam? Guardou-se
em si mesmo e foi olhar o espelho. Estava ficando calvo. Adquirira olheiras e o
rosto estava com a pele ressecada. As orelhas cresceram algumas medidas e sua
mente já não recebia novidades há algum tempo. E por falar no tempo, ele
percebeu, também já não tinha mais tempo. Voltou subitamente o rosto para a
janela, viu a escuridão e nela o temor de estar sendo observado. Caminhou como
quem tem medo até a vidraça e fechou-a de uma fechada só. Cerrou as cortinas e
com a impressão de que alguém o vigiava voltou para o espelho. Estava com o
olhar vermelho, mas não havia chorado. Na festa, disseram que ele estava
sofrendo por amor e que, preocupado, andava perdendo os cabelos. Falaram ainda
que, por andar ansioso, respirava ofegante e isso lhe trouxera uma cor de sol
no nariz. Sempre tivera o nariz avermelhado, mas a maioria só enxerga o
imediato e não vêem que o depois tem um antes. Caminhou pelo quarto, tinha
quase razão, estava sendo observado. Sentiu a pele arrepiando e um frio de
pavor lhe percorrendo a espinha, mas controlou-se, não era de ter medo. Apanhou
uma pequena tesoura e foi até a porta do quarto. Caminhou levemente, com o
objeto em punho, evitando o mínimo possível de ruídos. Abriu delicadamente a
porta. Como alguém que invade uma casa. Mas não saiu. Apenas esticou o pescoço
e observou o corredor. Não havia ninguém. Fechou a porta empurrando com o pé e
depois com a bunda. Voltou para o espelho. Com um pente fino apoiando aparou os
supercílios. Apanhou duas fatias de gaze, dobrou-as, e com um prendedor
especial prendeu-as nas ventas. Queria um nariz afinado, ninguém mais iria
debochar do seu nariz batatudo. Aplicou um pouco de creme no rosto, queria ter
cor de gente, pele de gente e... aspecto de gente. Com o rosto cheio de creme,
caminhou até a porta. Não teve mais dúvida. Estava sendo observado. Caminhou na
ponta dos pés até a janela, abriu-a de uma abrida só. A escuridão lhe invadiu
os olhos. Não tinha ninguém. A gente fica estranho quando se olha demais no
espelho e quando acredita cegamente nas pessoas. Ele estava sendo observado.
Havia alguém frente ao espelho.
Gostei do suspense, da expectativa criada no decorrer da narrativa, mas confesso que não esperava uma intromissão tão desonrosa do narrado em "agente fica estranho quando olha demais no espelho...". O tempo não é sutil, se torna realmente um estranho à espreita de um vacilo para deteriorar primeiro a matéria, depois a memória.
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