quinta-feira, 6 de novembro de 2014

GENTE ESTRANHA


           Acendeu a luz. A janela era como um quadro escuro, tamanha a escuridão do lado de fora. A cabeça girando ainda pelas conversas que ouvira a respeito de si mesmo uma hora antes. Minuciosamente repassou em sua memória tudo que lhe fora falado. E se ele fosse o que as pessoas falavam? Guardou-se em si mesmo e foi olhar o espelho. Estava ficando calvo. Adquirira olheiras e o rosto estava com a pele ressecada. As orelhas cresceram algumas medidas e sua mente já não recebia novidades há algum tempo. E por falar no tempo, ele percebeu, também já não tinha mais tempo. Voltou subitamente o rosto para a janela, viu a escuridão e nela o temor de estar sendo observado. Caminhou como quem tem medo até a vidraça e fechou-a de uma fechada só. Cerrou as cortinas e com a impressão de que alguém o vigiava voltou para o espelho. Estava com o olhar vermelho, mas não havia chorado. Na festa, disseram que ele estava sofrendo por amor e que, preocupado, andava perdendo os cabelos. Falaram ainda que, por andar ansioso, respirava ofegante e isso lhe trouxera uma cor de sol no nariz. Sempre tivera o nariz avermelhado, mas a maioria só enxerga o imediato e não vêem que o depois tem um antes. Caminhou pelo quarto, tinha quase razão, estava sendo observado. Sentiu a pele arrepiando e um frio de pavor lhe percorrendo a espinha, mas controlou-se, não era de ter medo. Apanhou uma pequena tesoura e foi até a porta do quarto. Caminhou levemente, com o objeto em punho, evitando o mínimo possível de ruídos. Abriu delicadamente a porta. Como alguém que invade uma casa. Mas não saiu. Apenas esticou o pescoço e observou o corredor. Não havia ninguém. Fechou a porta empurrando com o pé e depois com a bunda. Voltou para o espelho. Com um pente fino apoiando aparou os supercílios. Apanhou duas fatias de gaze, dobrou-as, e com um prendedor especial prendeu-as nas ventas. Queria um nariz afinado, ninguém mais iria debochar do seu nariz batatudo. Aplicou um pouco de creme no rosto, queria ter cor de gente, pele de gente e... aspecto de gente. Com o rosto cheio de creme, caminhou até a porta. Não teve mais dúvida. Estava sendo observado. Caminhou na ponta dos pés até a janela, abriu-a de uma abrida só. A escuridão lhe invadiu os olhos. Não tinha ninguém. A gente fica estranho quando se olha demais no espelho e quando acredita cegamente nas pessoas. Ele estava sendo observado. Havia alguém frente ao espelho.



                                                                                           

Um comentário:

  1. Gostei do suspense, da expectativa criada no decorrer da narrativa, mas confesso que não esperava uma intromissão tão desonrosa do narrado em "agente fica estranho quando olha demais no espelho...". O tempo não é sutil, se torna realmente um estranho à espreita de um vacilo para deteriorar primeiro a matéria, depois a memória.

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