FELI‘Z’IDADES
Vejo as aves bandoarem no céu. Juntas, são como as nuvens brancas.
Pergunto-me se são as mesmas quando elas se despedem das minhas vistas e se
escondem no infinito.
Lembro-me quando elas desciam do céu com o propósito de catar a comida
que o meu pai deixava. Todas as manhãs, eu corria até a janela, ajeitava a
cadeira vermelha a fim de ficar mais alto, debruçava ali e os meus olhos
ganhavam o quintal inteiro. As aves chegavam aos poucos, nunca em bando
completo. Depois que se alimentavam, com um impulso ligeiro alçavam voo e se
iam de bando único. Eu chegava à janela com os anseios de criança, a passos
rápidos, com medo de perder aquele espetáculo. Depois que os pássaros se iam,
lentamente eu deixava a janela. Às vezes, sem deixar a janela, eu fechava os
olhos e voava seguindo-os sem pensar na direção. Para onde iam os pássaros
quando terminavam o banquete? Será que voltavam às suas casas? Eu voltava pra
mim. Enchia-me de silêncios e ficava a procurar as respostas que não vinham. Os
livros provocavam ainda mais as minhas indagações, cujas respostas estavam em
meus silêncios. Como poderia alguém dar a volta ao mundo em oitenta dias? O
mundo era grande para mim, mas pequeno para o Julio Verne. Virava-se um
capítulo e pronto, um lugar novo dentro de mim se instalava, instigando a minha
imaginação. Dos dez aos quinze anos, voei em balões imaginários. Não gosto de
pipas. Elas voam aprisionadas aos seus donos. Os aviões voam conduzidos por
homens e os pássaros? Esses voam porque são donos de si mesmos.
Os primeiros voos de Santos Dumont não foram ao redor da Torre Eiffel,
mas em torno de si mesmo. Todo homem deseja voar, só ainda não aprendeu a
preparar as asas. Aos pássaros o voo era simples, bastava mover as asas e com o
um impulso ligeiro ganhavam o céu, rabiscando o meu ser.
Que a felicidade é um recorte do mundo, hoje eu sei. Apenas Eu sinto a
dimensão do crepúsculo acariciando os meus olhos e criando cores dentro de mim.
Lembro quando sem perceber troquei
a orquestra dos pássaros por um olhar. Meus quinze anos foram despertos por um
par de olhos que me mirava, porém o olhar não me avistava. No aeroporto
Samantha Reyes me olhava sorrindo. Cheio de encanto eu também sorria. Percebi
no instante seguinte que o riso dela me ultrapassava, celebrando a chegada dos
seus músicos. Samantha Reyes sentou-se ao meu lado dentro do avião e nunca mais
saiu de mim. Nossos cinco anos de namoro findaram-se quando fui servir a
Aeronáutica. Dos vinte aos trinta anos, me tornei uma pessoa de sentimentos
fáceis. Gastei-os me apaixonando por qualquer
rosto que exalasse encanto. Em cada despertar do sol, alguém tomava o meu ser
por completo. As estrelas e os ventos nunca fotografaram um mesmo rosto, nem
testemunharam emoções repetidas. A idade da razão me encontrou aos trinta e
cinco anos. Com destino a Madri, Samantha Reyes tomou o voo no meu voo. Depois
de cinco anos como piloto foi a primeira vez em que voamos juntos. No discurso
“Diálogo e Existência”, Martin Buber aponta que “entre o Eu e o Tu nasce uma
terceira pessoa, o Nós”. Em Madri Eu ia ter folga, ela faria um show e nós nos
encontraríamos para jantar.
A cantora subiu ao palco às 22h30min. No meio da multidão eu cantei todas
as músicas como fã que adora o ídolo.
Vejo as aves bandoarem no céu. Juntas, são como as nuvens brancas que me
levam ao passado. Pergunto-me se são as mesmas aves quando elas se despedem das
minhas vistas e se escondem no infinito do meu tempo. Assim como eu, acho que
não são as mesmas. Estou sentado na cadeira vermelha, minha mãe a guardou para
mim. Através da janela observo os pássaros gorjeando e catando a comida. Ouço
um leve som de piano. Às seis horas da manhã Samantha Reyes trabalha
incansavelmente numa nova canção. Nosso casal de filhos ainda dorme. Meus pais
ainda não saíram do quarto. Como um menino eu observo os pássaros. Os meus voos
atualmente são em função de uma agenda de shows, mas ainda sei voar, como homem
e como menino que segue os pássaros, sorrindo em todos os tempos.
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